14.6.07

GIANLORENZO BERNINI

Extâse de Santa Teresa, 1647-52
mármore
3,5 m
Roma, Santa Maria della Vittoria



PEDRO MEXIA

SANTA TERESA DE BERNINI


Bernini. É essa a forma
que nos vem
ao espírito. E a explicação
de Juan de Yepes:
estes versos usam o profano
como símile. Aqui,
o inverso. Teresa
não é Teresa, o mármore
outra matéria. Outra.
Pálpebras que se abrem
dentro doutras,
pálpebras, em orbita, desorbitadas,
o maor todo que vem
ao dentes. A voz
de Teresa, que não é Teresa,
que não é voz.
Vem do fundo. Vem.
Estes versos usam o sagrado
como símile, usam
Bernini, o rosto transposto
e transportado, suspenso
de duras âncoras.
E o amor todo
que vem aos dentes.

(de Senhor Fantasma, Oceanos, 2007)

13.6.07

AL BERTO

8


borboletas filiformes sobrevoam estes regatos tardios
escondem-se nos torrões da terra lavrada e desovam
plátanos espalham folhas semelhantes a complicados mapas topográficos

mais além
um acampamento cigano

caminho para a noite mas não tenho frio
é só o início dum provável outono
o acampamento recorta-se em contraluz
quando agressivos insectos trabalham recantos nómadas da memória

os ciganos possuem a sabedoria dos fogos acesos ao entardecer
quem poderá afirmar que um deles
o mais jovem
não aprende o mistério das cartas?
ou a mágica vida das linhas da mão?
a essa hora transmite-se de pai para filho
a arte dos insuspeitos ofícios do coração

as casas surgem de repente iluminadas por dentro
a paisagem envolveu-se de solidão
pressinto a força perfumada da terra subindo
ao medo da recente noite

(de TRABALHOS DO OLHAR, 1979/82, in O Medo, Assírio & Alvim, 1997)

[«vocês precisam é de Saramago... muito»

aconselho a audição de um singular documento disponibilizado por PCD no blog da Frenesi, que também aconselho]
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA


Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,

eis-me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem isto.

(de Claro Enigma, 1951)

10.6.07

ARTUR PORTELA FILHO

DIA DA PÁTRIA - DIA DA POESIA?


Junho de 1972

No dia 10 de Junho, António Quadros escrevia, no seu «Caderno Diário» do «Diário de Notícias», sob o título «O Dia da Poesia», o seguinte:
«...Já repararam? Nos outros países, o Dia Nacional é a data comemorativa de uma Revolução, do Nascimento de um Regime político, do início de uma Autonomia nacional, etc... Entre nós, comemorando-se um poeta, comemora-se Portugal. De algum modo, é toda uma nação que decide representar-se simbolicamente, não como vinculada primordialmente às contingências da vida política, mas antes a algo de muito mais profundo e intemporal: a Poesia dum Poeta que morreu há quatrocentos anos, uma obra imaterial, feita de palavras, de ideias e de sonhos.»

Certo.
Camões é um poeta.
O Dia de Portugal é o Dia de Camões.
Logo, o Dia de Portugal é o Dia da Poesia.
Embora - sem que se queira pôr em causa nem o Dia de Portugal nem Camões - se possa adiantar que há muitas maneiras de ler, e de fazer ler, Camões.
É fundamentalmente poética a leitura da sua ideologia?
É, sequer, essencialmente poética a leitura da sua poesia?
A imaterialidade de Camões pretende-se que continue a sê-lo?
Os sonhos de Camões querem-se como tais?
A intemporalidade de Camões é o que mais importa?
Camões lírico ou Camões épico?
Camões total ou Camões parcial?
Camões genial ou Camões instrumental?
Camões coragem ou Camões geografia?
Camões povo ou Camões pompa?
Camões amor ou Camões Alcácer?
Camões futuro ou Camões memória?
A ideia de Pátria não é discutível - o que é discutível são as ideias discutíveis de Pátria.
A ideia de Camões não é discutível - o que é discutível são os excessos de revivalismo camoniano.
E, no entanto, Camões é, para o povo português, o mais célebre dos desconhecidos.
E, porém, «Os Lusíadas» são, para o povo português, - o mais famoso dos livros fechados.
Oculto um sob uma barragem de retórica.
Despromovido o outro a dicionário de ênfase.
Despoetizados.
Feitos ideologia. Feitos motivação.
Mas quanto vale, hoje, a ideologia de Camões?
Mas que força tem, hoje, como motivação, Camões?
Com a atenção toda mobilizada para o facto de que Camões morreu há quatrocentos anos, esquece-se que Camões viveu há quatrocentos anos. O que será a sua grandeza. Mas, também, a sua circunstancia. A sua inevitável inserção cultural, ideológica, civilizacional. O seu limite.
E, apesar de tudo, ele há imensos Camões.
Há o Camões insuportável do senhor Dom João III.
Há o Camões enfático do senhor Visconde de Almeida Garrett.
Há o Camões republicano do Ultimatum.
Há o Camões tricaneiro do sr. Leitão de Barros.
Há o Camões cronológico do sr. Hernâni Cidade.
Há o Camões militarizado do sr. António José Saraiva.
Há o Camões liceal do sr. Sérvulo Correia.
Camões gesso. Camões bronze. Camões feriado. Camões Adamastor. Camões pagão. Camões cristão.
Só não há - Camões povo.
Porque não há povo nos «Lusíadas» - só heróis?
Ou porque entre o verdadeiro Camões e nós está esse colossal obstáculo que é - uma certa interpretação dos «Lusíadas»?
Se Camões fosse, só, a Lírica seria ele alguma data?
Dia da Poesia?
Celebra-se João Ruiz de Castelo Branco, Bernardim Ribeiro, Rodrigues Lobo?
Celebra-se João de Lemos, Soares de Passos, João de Deus?
Celebra-se Antero, Junqueiro, Cesário?
Sequer, coerentemente, Afonso Lopes Vieira, António Sardinha, Américo Durão?
Ou, antes, uma certa ideia da Poesia - a Épica?
Ou, antes, uma certa ideia da Epopeia - estrita, literal, restituída?
Camões é um élan - não é um programa.
Camões é uma época - não é o destino.
O destino aos Portugueses.
Dia de Portugal - Dia da Poesia?
Ou Dia de Portugal - Dia dos Portugueses?
O passado não se sabe de cor - analisa-se.
O futuro não se lê - faz-se.

(de A Funda - 2.º volume, editora Ática, 1972)