9.12.12

[efeméride]


JORGE DE SENA


Hei-de ser tudo o que eles querem:
a raiva é toda de eu não ser um espelho
em que mirem com gosto os próprios cornos,
as caudas com lacinhos, e os bigodes
de chibos capripédicos.
Não sou sequer imagem.
Mas voz eu sou
que como agulha ou lança ou faca ou espada
mesmo que não dissesse da miséria
de lodo e trampa em que se espojam vis
só porque existe é como uma denúncia.

Hei-de ser tudo, não o sendo. Um dia
— podres na terra ou nos caixões de chumbo
estes zelosos treponemas lusos —
uma outra gente, e limpa, julgará
desta vergonha inominável que é
ter de existir num tempo de canalhas
de umbigo preso à podridão de impérios
e à lei de mendigar favor dos grandes.
9/12/1972
  
Viajemos.
Oh não para comer comidas raras.
ou para experimentar corpos exóticos.
Mas para não ficar num lugar só
e na corrida não ter tempo nunca
de descobrir o que sabe: é porca
a mesma humanidade em toda a parte.
Olhemos a paisagem, monumentos,
notemos como há gente muito bela,
passemos onde espíritos sofreram
(sem visitá-los onde dormem pó)
— e tomemos depressa avião ou barco,
ou carro ou expresso, antes que alguém comece
a abrir a boca e mostre a dentadura.
9/12/1972

(in Visão Perpétua, edições 70, 1989)