FRANCISCO BRINES
O ESTRANHO HABITUALA casa, branca e grande, vazia do seu dono,
permanece. Silvam os pássaros; os muros, um olor.
Quem volta sofre com o desterro da casa.
Aqui descobriu o mundo; lugar para morrer.
Andou por cidades inóspitas; nelas só aprendeu
desprendimento; e até a si mesmo se estranhou.
Reflecte: terá amado a vida?
Supôs amar o instante e só amou sua carne
solitária, ou amou talvez a carne que o amou.
Por certo tudo fora desejo insatisfeito,
e sua esperança foi apenas nostalgia
do que viria depois; assim foi o futuro
como a lembrança: um fantasma de luz; e o outro,
sombra. A casa está vazia do seu dono
e ele chega desamado. O horto é aroma
de flor de laranjeira. Sobe as escadas e na sala
vê o mar escurecer, a inquieta lonjura.
E de novo surpreende, no jardim, quem o olha
e o que nunca lhe fala,
esse veloz ancião de cabelos brancos,
constante companhia de seus últimos anos,
esse ancião demente que o segue, ligeiro dia e noite,
presente como areia de um relógio,
agora hóspede estranho da casa, distante e sem convite,
recluso no jardim, sem nunca se deter,
e sempre que o olha aquele olha-o,
sem sorriso e expressão,
pois é cego e é surdo, e tão-pouco é mortal.
(tradução de José Bento, in
Ensaio de uma Despedida - Antologia (1960-86), Assírio & Alvim, 1987 -
documenta poetica / original de
Insistencias en Luzbel, 1977, com dedicatória "A Manolo Borrás")
ÀLEX SUSANNA
A ÚLTIMA LUZLa casa, blanca y grande, vacia de su dueno,
permanece. Silban los pájaros; las tapias, un olor.
Quien regresa se duele del destierro de la casa.
...........................................................F. Brines
Não passa o tempo, passam as coisas.
Homens, mulheres, árvores, crianças
que se aproximam, se afastam e se esquecem,
e descobrimos que tudo foi sucedendo
de um modo similar desde um remoto início.
Mas o tempo não, esse não passa;
passam as coisas e a dor cresce dentro de nós
e também nós passamos, e outros chegam
e trazem o prazer e depois levam-no.
Assim tudo passa - e a vida e a morte,
e aquilo que mais queremos
(só passa aquilo que se ama).
Por isso nada passa, fora de nós,
de ti, de mim, tornamo-nos velhos e preguiçosos
e queríamos acreditar que tudo se mantém
mas o corpo é mais débil cada dia,
a memória mais frágil,
e parece que tudo, inevitavelmente,
conhece o seu outono e o seu último inverno.
E afinal nada passa, ou quase nada:
só nós passamos
e em vez disso continuarão as casas,
os quartos onde vivemos tantas horas
a ler e a falar, a beber, a rir,
amando-nos, dormindo...
Perdurarão os objectos, sempre tão dóceis
ao nosso olhar - uma cadeira, um jarrão,
uma antiga gravura, a lareira, uma fotografia -,
e as esquinas, as praças,
as ruas tortuosas do bairro antigo
onde tão frequentemente vagueámos
em busca da última luz, a pedra dourada,
o jardim escondido,
...........................e perdurarão, finalmente,
os caminhos entre as cepas e as praias,
onde soubemos esquecer-nos de nós mesmos
e fomos felizes de tanto esquecimento.
Perdurará tudo, ou quase tudo:
só nós passaremos,
sombras incertas de alva enevoada,
longínquas chamas de um fogo provocado,
seixos lançados no fundo de um negro poço
que ninguém poderá fazer sair da sombra.
(de
Palácio de Inverno / Palau d'hivern, 1987, in
Os Anéis do Tempo, tradução de Egito Gonçalves, Limiar, 1995 -
Os Olhos e a Memória)