[outros melros LXVI]
MILAN KUNDERA
No decorrer dos últimos duzentos
anos o melro abandonou as florestas para se transformar num pássaro das
cidades. Primeiro na Grã-Bretanha, logo no final do século XVIII, umas dezenas
de anos mais tarde em Paris e no Ruhr. Ao longo do século XIX, conquistou, uma
após outra, as cidades da Europa. Instalou-se em Viena e em Praga por volta de
1900, continuou para leste, chegou a Budapeste, Belgrado e Istambul.
No que diz respeito ao planeta,
esta invasão do melro no mundo do homem é incontestavelmente mais importante do
que a invasão da América do Sul pelos Espanhóis ou do que o regresso dos Judeus
à Palestina. A modificação das relações entre as diversas espécies da criação
(peixes, pássaros, homens, vegetais) é uma modificação de ordem mais elevada do
que as mudanças nas relações entre os diferentes grupos de uma mesma espécie.
Que a Boémia seja habitada pelos Celtas ou pelos Eslavos, a Bressarábia
conquistada pelos Romenos ou pelos Russos, à Terra tanto lhe faz. Mas que o
melro traia a sua natureza original para seguir o homem no seu universo
artificial e contranatura é um facto que já altera alguma coisa quanto à
organização do planeta.
No entanto, ninguém ousa
interpretar os dois últimos séculos como a história da invasão das cidades do
homem pelo melro. Somos todos prisioneiros de uma concepção pré-estabelecida do
que é importante e do que não o é, fixamos sobre o que é importante olhares
ansiosos, enquanto furtivamente, nas nossas costas, o insignificante conduz a
sua guerrilha, que acabará por alterar sub-repticiamente o mundo e a atacar-nos
de surpresa.
(excerto de O Livro do Riso e do Esquecimento, tradução de
Tereza Coelho, 3ª edição: publicações Dom Quixote, 1986)