13.8.12

[outros melros LXVI]

MILAN KUNDERA


No decorrer dos últimos duzentos anos o melro abandonou as florestas para se transformar num pássaro das cidades. Primeiro na Grã-Bretanha, logo no final do século XVIII, umas dezenas de anos mais tarde em Paris e no Ruhr. Ao longo do século XIX, conquistou, uma após outra, as cidades da Europa. Instalou-se em Viena e em Praga por volta de 1900, continuou para leste, chegou a Budapeste, Belgrado e Istambul.
No que diz respeito ao planeta, esta invasão do melro no mundo do homem é incontestavelmente mais importante do que a invasão da América do Sul pelos Espanhóis ou do que o regresso dos Judeus à Palestina. A modificação das relações entre as diversas espécies da criação (peixes, pássaros, homens, vegetais) é uma modificação de ordem mais elevada do que as mudanças nas relações entre os diferentes grupos de uma mesma espécie. Que a Boémia seja habitada pelos Celtas ou pelos Eslavos, a Bressarábia conquistada pelos Romenos ou pelos Russos, à Terra tanto lhe faz. Mas que o melro traia a sua natureza original para seguir o homem no seu universo artificial e contranatura é um facto que já altera alguma coisa quanto à organização do planeta.
No entanto, ninguém ousa interpretar os dois últimos séculos como a história da invasão das cidades do homem pelo melro. Somos todos prisioneiros de uma concepção pré-estabelecida do que é importante e do que não o é, fixamos sobre o que é importante olhares ansiosos, enquanto furtivamente, nas nossas costas, o insignificante conduz a sua guerrilha, que acabará por alterar sub-repticiamente o mundo e a atacar-nos de surpresa.


(excerto de O Livro do Riso e do Esquecimento, tradução de Tereza Coelho, 3ª edição: publicações Dom Quixote, 1986)