12.5.05

GEORGES CHARBONNIER: [...] A partir de quando pensa que surgiu a literatura? Como a reconheceu?

JORGE LUIS BORGES: Reconheci-a de maneira física. Há qualquer coisa que muda em mim. Não me atrevo a falar da circulação do meu sangue ou do ritmo da minha respiração, mas existem coisas que sinto imediatamente como sendo reflexos da poesia. Por exemplo, se tivesse de analisar ou de justificar um verso como: «O vento da outra noite destruiu o amor», talvez isso me custasse muito e a explicação certamente não seria satisfatória. Mas quando digo esse verso, mesmo em mau francês, ou quando alguém diz esse verso, sinto que estou perante a poesia. Da mesma maneira que sentimos, não sei o quê, o mar, uma mulher, o pôr do sol, da mesma maneira se sente a amizade ou a inteligência dos outros. Isso é uma experiência imediata. Por exemplo, você vai a uma reunião, a um cocktail, e apresentam-lhe duas pessoas. Uma pronuncia algumas coisas bastante inteligentes. A outra não diz senão banalidades. Pensa nisso e tem a convicção de que a pessoa que disse coisas inteligentes é um imbecil e a outra é de facto inteligente! Eu julgo que não nos enganamos. Ora, esta impressão imediata da poesia, da inteligência ou até da bondade é realmente mais exacta. Enquanto o raciocínio é uma espécie de cadeia, não? se nos iludimos uma única vez, o resto não existe. Penso que se sente a poesia como a música, como o amor, como a amizade, como todas as coisas do mundo. A explicação vem depois.

(excerto de Entrevistas com Jorge Luis Borges, tradução de Serafim Ferreira, Início, 1968)

9.5.05





JAMES RUSSELL LOWELL

SOBRE UM RETRATO DE DANTE POR GIOTTO


E este és tu, que pálido fitaste,
Com calmo e frio olhar imarcescível,
As almas torturadas, e notaste
Cada pena, e passaste, inda impassível,
Salvo quando p'ra trás ousou lançar
Teu coração um proibido olhar,
E viu Francesca, como uma criança,
Montar serena teu corcel que avança
E com mão firme o seu orgulho dominar?

Com pálpebras descidas, fronte calma,
E olhar remoto, que interior divisa
Da bela Beatriz errando a alma
Em ilhas frescas de marinha brisa,
Atravessas das ruas o rumor,
Protegido de ouvi-lo pela flor
Que ela te deu e a tua mão levanta,
Essa palma que vem da Terra Santa; -
Aqui não há sinal da ruína e sua dor.

Mas há alguma coisa que contorna
Teus lábios, e do teu fado é profeta,
A sombra quando o eclipse inda não torna
Do negro disco a escuridão completa;
Alguma coisa que banir-te quer
Dos homens e vis fados do seu ser,
Ainda que Florença não houvesse
Fechado as suas portas, e tivesse
Deixado a tua eterna dor de te tolher.

Ai! o que segue destemidamente
Os ditames de uma alma de poeta
Vagueará, sem que o force o mundo insciente,
Em exilada solidão completa;
Mais que as muralhas de Florença forte
A muralha que o exclui, até que a morte
O solte, de amizade e lar, e faz
Que a sua oração seja a pedir paz
Como a tua, ó guerreiro altivo contra a sorte!

(tradução de Fernando Pessoa para a Biblioteca Internacional de Obras Célebres, publicada por volta de 1911 - editado por Arnaldo Saraiva em Fernando Pessoa, Poeta - Tradutor de Poetas, Lello editores, 1996)

8.5.05

[no aniversário do fim da guerra]

GÜNTER KUNERT

SOBRE ALGUNS QUE ESCAPARAM


Quando o homem
Foi retirado
Dos escombros
Da sua casa
Bombardeada,
Sacudiu-se
E disse:
Nunca mais.

Pelo menos não já.

(Tradução de Yvette Centeno in 90 Poemas, apáginastantas, 1983)