16.7.05





EZRA POUND


ACERCA DO SEU PRÓPRIO ROSTO NUM ESPELHO

Ó alheio rosto aí no espelho!
Ó má companhia, ó santo homem.
Ó bobo, varrido de desgostos,
Que respondes?
És miríades
Que lutam e brincam e perpassam,
Gracejam, desafiam, contradizem.
Eu? eu? eu?
          E tu?

(tradução de José Palla e Carmo, in Poemas Escolhidos, Publicações Dom Quixote, 1986 - original de Personae, 1909)

12.7.05

Eu Sou!
ANTÓNIO CABRITA

d)

Quantas vezes este mesmo verso
a expensas ainda da bebedeira
de sábado te pôs a tiracolo? Abcissas

e ordenadas, o débil rogo do epos:
no decurso de uma velha adição
és por tudo experimentado enquanto

uma barcaça de ossos recolhe pálpebras
caídas, dedos benévolos, privados
orifícios, que singram ufanos na tua sombra.

Mas à beira da cama comum quem te vale
n'aflição? Olha o Horácio, lixado
com as fibras ópticas o MTV a CNN

e as imagens digitais que rematam
em relinchos a franca fisicalidade do homem.
Pobre Inominado à mercê de uma tecla,

na Internet, grisalho como certas línguas
em desuso. A escâncaras não mas
talvez ainda uma réstia de temas líricos

(dissertar sobre o ching-shi na dinastia
Ching - dum tal pai dignos bastardos!)
nos desembarque, ó ilustres nautas,

numa baía de céu pneumático, dominical
e suburbano. Porque insular, o dom,
vem ainda desanuviar à mão, sagrar portos.

E em domicílio tão incerto quem mais
nos defenderia da massa amorfa preventiva
que odeia Quiron e divide enumera

quantifica, tomando por receitas as exéquias
de Ulisses? é já segunda-feira, o verso claudica
com o peso do homem mas à ré ainda o vejo

ao leme. Contraria a volúvel disposição
do poeta, porfia na treva: «A meio
caminho da nossa vida encontrei-me...»

(excerto do poema I BEG YOUR PARDON! / Passeios em Dante, incluído em Arte Negra, Fenda edições, 2000)
Qual Hermano Saraiva, qual José Gil! Isto sim!
GNR

Valsa dos Detectives

Tem medo do escuro tal criança sem futuro
è falso velhaco cobarde armado em duro

Vai pelo mundo guiado pela mão
Até depois de morto dá uma volta no caixão

Treme e vacila nem na cama está seguro
Teme que alguém o chame geme sofre de medo puro

Evita o olhar dos mortais que o rodeiam
Esconde-se em mentiras que mesquinhas serpenteiam

É só paranóia mania da perseguição
Desconfiar de todos resulta da sua traição

Letra: Rui Reininho
Música: Toli César Machado


(do álbum Valsa dos Detectives, 1989)

11.7.05

JUAN GÓMEZ CASAS

- Rio-me quando os senhores que escrevem novelas fazem os seus personagens passar fome, enquanto que eles vivem no melhor conforto e fartura nas suas casas. Rio-me por isto: que saberão eles da fome? Que saberão eles no que se passa nas tripas vazias do faminto, os seus desconfortos, dos quais há toda uma variedade, das suas reacções ou das chispas que a fome dá aos seus pensamentos? Digo-lhes que esses indivíduos que escrevem são todos ignorantes - fez uma pausa, durante a qual agarrou num passarito que saltitava no pescoço. Deu-lhe de comer, estendeu-lhe a mão. Passeou um olhar pelo grupo que o rodeava -. Um dia escreverei qualquer coisa - disse. Qualquer coisa que assombrará e envergonhará muita gente.

(excerto do conto O Homenzinho dos Pássaros, incluído em Histórias do Cárcere, tradução de José Rolim, Cadernos Peninsulares, 1970)

10.7.05

REGINA GUIMARÃES

DIZER-ME RESPEITO

Nenhuma resistência se organiza
apenas alguma simetria de palavras justas
postas em comum. Maldito oásis,
tribunal de árvores na tua sombra não
há descanso para as mãos apenas para,
de serafim em serafim, a competição dos espíritos
de toalha ao pescoço. Passa um pássaro
acobardado; muito e tudo escondem as asas,
numa feérica colheita de pontos de encontro.

(de Anelar, Mínimo, &etc, 1985)

[outros melros XXVIII]

ANA HATHERLY


UM VOO PROTEGIDO


Segundo Messiaen
o melro não canta:
desenha no espaço
complexas colcheias melismáticas.

Não é negro:
às vezes
é mesmo branco
sua brilhante plumagem
em sequestro
está na partitura do Maestro
que aliás
prefere a cor lilás
(muito mais vibrátil
segundo me disse).

Na esfera do não-onde
o melro tem
seu voo protegido.

(de Itinerários, edições Quasi, 2003 - uma existência de papel)
[A página 56!!!]

MÁRIO DE CARVALHO

Isto de amar alguém tem que se lhe diga e decididamente não vem nos livros.
Assim me foi revelado por Simão Ullenstein, quando o encontrei nos últimos anos de uma longa vida, a um canto da terceira sala da gigantesca biblioteca da Aqwa, frente à sua enorme mesa de fichas.
- Pergunte-me qualquer coisa sobre o assunto - disse-me Simão.
Como ter mesmo? - perguntei eu.
Ele manuseou desencantado um ficheiro amarelecido, dobrou em quatro um velhíssimo pergaminho e volveu-me:
- Eu não dizia? Nunca tenho resposta para nada...
Foi toda uma vida de compilador em vão.
O epitáfio de Ullenstein era um artístico ponto de interrogação gótico, muito negro, sobre alvo mármore.
Consegui que os herdeiros de Ullenstein me vendessem os seus ficheiros e documentação.
Uma noite comecei a desempacotar. Estava tudo em branco. Os pergaminhos mais antigos, por ele coligidos, haviam sido cuidadosamente apagados, com uma solução corrosiva.
Há dias voltei à enorme biblioteca. A um canto encontrei um jovem muito moreno, de barbicha negra talhada em ponta. Andava numa azáfama febril, de estante para estante.
Perguntei-lhe que fazia.
- Estou a coligir tudo, sobre amar alguém - disse.
- Conhece os trabalhos de Ullenstein?
- Perderam-se todos no incêndio da biblioteca do Vaticano, não sabia? - respondeu.
- Daqui a sessenta anos nos encontraremos - volvi eu.
Ficou uns momentos quieto. Depois, sem me voltar, ouvi-lhe as passadas miúdas, de prateleira para prateleira, o dedilhar nervoso sobre os infólios.

(de Fabulário, &etc, 1984 - há uma edição mais recente pela editorial Caminho)