MÁRIO DE CARVALHO
Isto de amar alguém tem que se lhe diga e decididamente não vem nos livros.
Assim me foi revelado por Simão Ullenstein, quando o encontrei nos últimos anos de uma longa vida, a um canto da terceira sala da gigantesca biblioteca da Aqwa, frente à sua enorme mesa de fichas.
- Pergunte-me qualquer coisa sobre o assunto - disse-me Simão.
Como ter mesmo? - perguntei eu.
Ele manuseou desencantado um ficheiro amarelecido, dobrou em quatro um velhíssimo pergaminho e volveu-me:
- Eu não dizia? Nunca tenho resposta para nada...
Foi toda uma vida de compilador em vão.
O epitáfio de Ullenstein era um artístico ponto de interrogação gótico, muito negro, sobre alvo mármore.
Consegui que os herdeiros de Ullenstein me vendessem os seus ficheiros e documentação.
Uma noite comecei a desempacotar. Estava tudo em branco. Os pergaminhos mais antigos, por ele coligidos, haviam sido cuidadosamente apagados, com uma solução corrosiva.
Há dias voltei à enorme biblioteca. A um canto encontrei um jovem muito moreno, de barbicha negra talhada em ponta. Andava numa azáfama febril, de estante para estante.
Perguntei-lhe que fazia.- Estou a coligir tudo, sobre amar alguém - disse.
- Conhece os trabalhos de Ullenstein?
- Perderam-se todos no incêndio da biblioteca do Vaticano, não sabia? - respondeu.
- Daqui a sessenta anos nos encontraremos - volvi eu.
Ficou uns momentos quieto. Depois, sem me voltar, ouvi-lhe as passadas miúdas, de prateleira para prateleira, o dedilhar nervoso sobre os infólios.
(de Fabulário, &etc, 1984 - há uma edição mais recente pela editorial Caminho)
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