11.10.14

RUTH FAINLIGHT


ESSA PRESENÇA

Como um pintor afastando-se do cavalete,
erguendo-se da mesa de trabalho
com o pincel cheio de tinta, para ver melhor
onde é preciso outro toque de vermelho, como
um tapeceiro ponderando se chegou
a altura de mudar o padrão, um escultor
hesitando antes do primeiro e decisivo corte,
medito um poema, repetindo palavra por palavra,
tentando entender onde é preciso alterar uma nota,
testando a respiração, o sentido e a sorte,

como quem fita a superfície de um espelho
através dos insondáveis níveis entre vidro e prata
até às pupilas dessa presença reflectida
que por cima do meu ombro emerge das suas profundezas.


(in Visitação, tradução colectiva em Mateus, Quetzal editores, 1995)

10.10.14

SOUSA DIAS


[...] Como todas as artes, a poesia é experiência sensível, mas essa experiência não é a tradução estética da experiência vivida, não é a estetização do vivido. Não é a vida do criador que explica a obra de arte, quando muito é a obra que explica a vida, o modo de vida do autor. Impotência da psicologia em arte, ou a arte como uma antipsicologia objectiva, «poder do falso» (Nietzsche). Sem dúvida, cada poeta fala das suas experiências. Mas trata-se de experiências que são já uma evasão do vivido, a auto-ultrapassagem do vivido na sensação, em fulgurações visionárias de uma subjectividade alucinada, arrancada a si, posta na linguagem fora de si. Todos os poetas convergem neste ponto. «Os versos não são sentimentos, são experiências», escrevia Rilke (ou o seu heterónimo Malte Laurids Brigge), experiências literárias cuja matéria-prima não são pois vivências, nem mesmo a memória das vivências, mas antes, em termos rilkeanos, a sua marca «já sem nome» no poeta, o seu rasto anónimo no esquecimento de tudo: por exemplo a Infância pura tal como nunca foi vivida nem dada na recordação, o puro Amor como a invivível essência afectiva dos amores vividos. Mallarmé por sua vez falava da poesia como uma experiência sem eu, subtractiva do eu, como uma experiência de «destruição» do eu como ele dizia, mesmo se a experiência mallarmeana, ao encontrar no lugar do eu abolido apenas a linguagem e nada mais além dela, tendia a abolir com ele também a sensação, toda a sensibilidade, o 'pathos' poético. Paul Celan repetirá que «a arte põe o eu à distância», mas já antes Trakl aspirara a uma poesia «impessoal e saturada de visões», Pessoa autopsicografara o «fingimento» poético, a irredutibilidade da emoção poética à emoção psicológica, e Ruy Belo dirá que o poeta «imolou o coração à palavra». Eugénio de Andrade confirma: «a poesia é uma arte impessoal». Como o é toda a arte. 


(excerto de «Poesia, Arte Bilingue», in O Que é Poesia?, nova edição aumentada: Documenta, 2014)

8.10.14

ADOLFO CASAIS MONTEIRO

O poder de alusão da poesia — que a tal se resume tudo quanto a tradição da análise literária clássica especificou sob os nomes dos vários tropos (metáfora, perífrase, etc., etc.) — não coube nunca nessas prisões douradas que a crítica lhe foi tecendo pelos séculos fora. O poeta diz muito em poucas palavras... e a análise literária diz de menos em palavras demais. Ai de nós, tentar compreender é uma doença incurável. Pois continuemos tentando.
A poesia é esquiva. A multiplicidade de aparências em que se envolve (ou seria melhor dizer: em que a envolvemos?) permite todas as confusões, e supor-se-lhe dificuldades ou facilidades que não tem, e nas quais se vão enredando inapelavelmente todos quantos são dominados pelo desejo de ser poetas, sem que nada os disponha realmente para tal. A todos ela parece oferecer uma esperança, mas... são sempre poucos os escolhidos.
A poesia moderna «permitiu» a ilusão de ser a poesia fácil. Foi mesmo este um dos argumentos mais reproduzidos por todos quantos procuravam «razões» contra ela. É, aliás, um argumento sob o qual se revela profundo pessimismo acerca da inteligência humana: pois entenderão tais objectores que seja realmente difícil aprender a «fazer» um soneto ou uma ode? Se tal fosse difícil, como havíamos de classificar as coisas realmente... difíceis?!
Na realidade, afirmar a facilidade em fazer versos «sem medida» nem rima será o mesmo que fazê-lo... em relação à prosa! De onde se conclui que tal argumento significa antes de mais nada o seguinte: ignorância de qual seja a dificuldade tanto de fazer verso como prosa. Valery Larbaud escreveu, falando do verso livre, que ele «estabelece limites e restrições (contraintes) mais subtis e mais difíceis de manter» do que o verso chamado «regular». Mas, precisamente, não é isto coisa de aparência, que salte aos olhos dos profanos — e, entre estes, há que contar todos aqueles que se dispuseram a fazer versos «sem medida», porque agora era fácil fazer poesia...
Mas não nos iludamos! Como realmente também não era difícil fazer versos «regulares», a situação não se modificou; somente que, antes de deitar versos no papel, os não poetas de antigamente iam aprender nos tratados de versificação aquilo que lá está — ao alcance de qualquer pessoa com algumas letras. A poesia era, e não deixou de ser, difícil. A dificuldade nunca estivera na técnica de fazer versos, e continuou a não estar na suposta falta de técnica do fazer versos livres.


(excerto inicial do ensaio «Dizer não dizendo», in A Palavra Essencial, editorial Verbo, 1972)

7.10.14

JOSÉ TERRA


Ah! Lanço o fumo do meu cigarro para o Universo...

Aqui há gente, caramba!
Gente com pescoço articulado para espreitar às vezes
um rumor de gente por de fora dos muros da cartuxa.
E há um poeta que se debruça à noite sobre o mar
antes de adormecer roído pelo caruncho da História.
E há paisagens inverosímeis que pousam por dentro do crânio.
Há degraus para o silêncio.
Um sábio estuda a nova fórmula da paciência.
Há os que acreditam e vão e os que vão pela porta estreita
no carrocel da morte e vêem coisas espantosas!


(de Canto Submerso, 1956)