25.4.08

SÉRGIO GODINHO

ISTO ANDA TUDO LIGADO


Ainda não vi a impressionante mariposa ainda não
Ainda não vi a pretendente pesarosa ainda não
Ainda não vi a tarde morna e vagarosa ainda não
Ainda não vi ainda não vi as duas faces da provável solidão

Ainda não vi a bomba H
ainda não vi a de neutrões
ainda não vi os meus travões
a ver se paro antes de chegar lá

Ainda não vi o riso que tudo desvenda ainda não
Ainda não vi o reverendo e a reverenda ainda não
Ainda não vi o leão ferido e a sua senda ainda não
ainda não vi a face clara da possível confusão

Ainda não vi a hora H
ainda não vi a mão em V
ainda não vi o dia D
em que a guerra final começará

Quando eu nascer para a semana ó mana
quando eu nascer para a semana
hei-de ouvir o teu parecer
hás-de me dizer
hás-de me dizer
hás-de me dizer
se é cada coisa para seu lado
ou se isto anda tudo ligado

Ainda não vi as artimanhas da saudade ainda não
Ainda não vi a caravana na cidade ainda não
Ainda não vi a incorruptibilidade ainda não
ainda não vi as duas faces da provável solidão

Ainda não vi a bomba H
ainda não vi a de neutrões
ainda não vi os meus travões
a ver se paro antes de chegar lá

Ainda não vi o abraço à porta da taberna ainda não
Ainda não vi a ideológica lanterna ainda não
Ainda não vi a mão que avança para a perna ainda não
ainda não vi a face clara da possível confusão

Ainda não vi a hora H
ainda não vi a mão em V
ainda não vi o dia D
em que a guerra final começará

Quando eu nascer para a semana ó mana
quando eu nascer para a semana
hei-de ouvir o teu parecer
hás-de me dizer
hás-de me dizer
hás-de me dizer
se é cada coisa para seu lado
ou se isto anda tudo ligado

Ainda não vi a grossa lágrima ao espelho ainda não
Ainda não vi o grande chefe e o seu grupelho ainda não
Ainda não vi o azul-turquesa e o vermelho ainda não
Ainda não vi ainda não vi as duas faces da provável solidão

Ainda não vi a bomba H
ainda não vi a de neutrões
ainda não vi os meus travões
a ver se paro antes de chegar lá
Quando eu nascer para a semana ó mana
quando eu nascer para a semana
hei-de ouvir o teu parecer
hás-de me dizer
hás-de me dizer
hás-de me dizer
se é cada coisa para seu lado
ou se isto anda tudo ligado

(do álbum Na Vida Real, de 1987 e do álbum O Irmão do Meio, de 2003, com Da Weasel e Gabriel O Pensador)
PAULO DA COSTA DOMINGOS

Falo do prodígio, da festa, do licor
de frutas raras e escassas. Do tempo
cansativo, é coisa de que menos falo,
no espaço procuro o furor do teu éter.
Só não posso ganhar a partida à sorte,
pensei até na mesa pé-de-galo mas desleal
será por força de rito evocar-te,
pedir à madeira o aroma que de ti

retém o bosque. Nunca eu me perdi
nas tuas sábias barreiras, esse paradoxo
intemporal: a queda de Lúcifer. Vamos,

vamos, olha que o Mundo não aguarda,
fenece como um cadáver se o chamamento
do nosso riso o não salvar.


(de Abside, 1992 – in Carmina 1971-1994, Antígona, 1995)
ANA SALOMÉ

Ode da liberdade


devíamos criar uma cidade nova,
livre,
desde as pontas dos dedos, as estradas,
até à polpa das palmas das mãos,
as muralhas,
até ao centro histórico,
para nele vivermos séculos sem fim,
e mergulharmos nos rios,
as linhas do nosso
destino.
devíamos criar um cidade livre,
nova,
desde o vulcão, o nosso
repouso em labaredas,
para um primeiro beijo
fora de território nacional.
até à lonjura da maior
viagem, dormirmos na pousada
que abriga tectos em estrelas,
com os olhos fechados,
trocados, numa nova cidade,
ilha de nós e, quando
regressássemos,
morávamos na nossa
grande casa da árvore,
cravejados de folhas, pássaros e beijos,
as mãos polpa de maçã
um do outro só à espera
de ver nascer a madrugada
debaixo dos braços
para o último arrepio
de todos os tempos:
amarmo-nos.

(daqui e de um livro a sair para breve)
INÊS LOURENÇO

TOPONÍMIA



Mudam-se os tempos. Já
não sabemos as matinais canções
nem habitamos vilas morenas.
Toleramos serventes de pedreiro louros,
de preferência não legalizados. Queremos
um grande apartamento em condomínio
fechado, um ferrari, uma piscina, um topo
de gama de uma coisa qualquer.

Temos ruas, temos praças e pontes
com nome de revolução. Como todos
os países temos hino - nação valente
imortal. Tivemos canela e diamantes,
santos, barregãs e dinastias de
tiranos e servos. Andámos muito
no mar, trocando rotas e poderes,
escravos, inquisições e cruzes.

Agora, neste estreito
quadrilátero, de onde saímos
e mal regressámos, sem índias nem
quinto império - salvou-se o manuscrito do
Luís Vaz a nado - restam-nos a sardinha
e a conquilha - ao que consta cercadas
de barcos espanhóis - o bacalhau
que já não vem da Terra Nova, a memória
dos pescadores de baleias, esgotada a captura
nas ilhas.

Também temos o treze
de Maio, o negócio clandestino
das abortadeiras, a broa de Avintes,
os tintos, por enquanto de marca e
o leitão da Bairrada e o Benfica e
o Sporting e o Futebol
Clube do Porto.

Temos ruas, temos praças e
pontes com nome de revolução,
topónimos nebulosos que a distância
apagará. Apenas aquela rua
chamada Cantor Zeca Afonso
poderá surpreender o transeunte
se acrescentarem o aviso:

nunca quis uma rua
só para si.


(de Logros Consentidos, & etc, 2005)
DAVI REIS

Grita Liberdade


Sufocas num estrangulado estridor
a pose de executivo,
a noite curta, insuficiente,
do palhaço que dizias, sempre o riso.
A contrariedade de não se ser nunca o que se quis,
não evitando agarrar uma corda no precipício
de cair queda livre de ser feliz.
Grita! Não será o hábito a fazer-te suportar a vida;
Não será por nada que a acharás desencontrada, perdida.
Em vão chorarias sobre ti como sobre um túmulo caiado,
e não o farás – antes deixarias vazio o corpo num gesto alado,
aéreo, e olhando-te lá em baixo, na ausência de ti mesmo,
gritarias, desesperado:
- Qual o sentido da vida?
E o eco responder-te-ia, sincopado:
- A vida!; A vida!...
Grita!, e ascenderás ao deus em ti,
mas não aos ouvidos do homem já de si emudecido,
senão no vagar pardacento de todos os dias,
cinzento nas mesmas vénias e reverências
redundantes de reaccionarismo ou hipocrisia,
acomodadas e amenistas,
no afã prescrito pela hierarquia,
tão sonante e impressiva quanto fria.
Meu amigo, sorri... sorri!
Sorri essa estrelinha que cintila
incandescente e exaltada, brilhante!, em ti.
“Como a vida esplêndida é aborrecida e inútil!”

Dedicado ao Sérgio Martins

(de Pôr a escrita em noite, Corpos editora, 2008)
[lembrando uma fugaz conversa ontem à noite, com um recém regressado de San Francisco]

LAWRENCE FERLINGHETTI

EM PERÍODO DE REVOLUÇÃO POR EXEMPLO


Acabava de mandar vir um prato de peixe ao balcão
quando três belas pessoas
completamente fodidas entraram
não sei como nem porquê
pensei que deviam ser
fodidas excepto
que eram muito lindas
dois homens e uma mulher
com belos cabelos louros
bem arranjados e
com vestes de desporto
como se viessem de descer
duma velha Stutz
descapotável
aberta com raquetas de ténis
e a mulher avançou a enormes passos
até ao fundo do restaurante
encontrou uma mesa vazia
e voltou
para buscar os outros dois
acenando
com elegância
sorrindo imperceptivelmente
e todos os três
avançaram lentamente para a mesa
como se não tivessem medo
de nada nem de ninguém
naquele lugar e
tomaram posse do sítio
com lindas expressões e
a lindíssima mulher
instalou-se com graça
no sofá ao lado
do mais novo dos dois homens
ambos tinham
cabelos castanhos ondulados não muito longos
cortados como os campeões
de ténis de Hollywood ou em todo o caso
como visitantes duma outra cidade
mais elegante que a nossa e
de toda a evidência gente de bem
e mais educados que qualquer outro
nesse lugar
eles pareciam pertencer aos Kennedys
e não tinham neles uma gota de sangue
Índio ou Italiano
ela tinha sem dúvida
vários caminhos em sua frente
com seus dois homens
um deles podia ser
seu irmão
não o podia imaginar levando
uma carabina
e ela não parava de esfregar os cabelos
com tanta graça
tirando-os da frente dos olhos e
sorrindo a ambos
e a nada em particular
que pudesse imaginar e
seus lábios mexiam-se com graça
num suave sorriso
eu tentava imaginar o que
ela podia estar a dizer com
seus lábios perfeitos sobre
seus dentes perfeitamente brancos
seus olhos que caíam de vez em quando
sobre o balcao onde
gente ordinária estava sentada
comendo tranquilamente
seu ordinário almoço
enquanto as três belas criaturas que
se podiam encontrar não importa onde
pareciam prontas a mandar vir
qualquer coisa de especial e
de o comer com gelados e cigarros e
meu peixe acabou de chegar
com aspecto mal descongelado e
completamente plastificado mas
decidi comê-lo mesmo assim
Ela era uma criatura magnífica e eu
senti-me como Charlie Chaplin comendo seu sapato
quando seus olhos pousaram sobre mim
o Modern Jazz Quartet
tocava nos altifalantes e
noutras circunstâncias
em período de revolução por exemplo
talvez ela me beijasse.

(in A Boca da Verdade, tradução do americano de André Shan e Isabelle Lima, edição do Autor e do Tradutor, 1986 – original de Open Eye, Open Heart, 1973)

24.4.08

Ainda há quem se acanhe
Com a pronúncia que tem

Sérgio Godinho

O que nos põe de acordo é o que dizemos
E se negamos à palavra o risco de a dizer
Anulamos a marca do que nos une.

Se, acanhados, nos rendemos ao lucro
Do vocábulo premeditadamente correcto,
Cingido por uma técnica limpa e pela lei,

Então recusamos a delicadeza,
Morosa de séculos e paciente,
Que remói cada sílaba e a transporta

Em vasos rústicos e desprezados,
Alheios a ortodoxias gráficas
Ou a gramaticais exigências postuladas.

Como ia dizendo, transportamos cada sílaba
Até um outro rigor – inconsciente, é certo,
Mas marcado pela melodia de que nasceu

E pelo sabor do que pais dizem a filhos,
Do que filhos a pais respondem
Ou do que em locais obscuros se aprende.

O que nos põe de acordo é a vontade
Com que nos dispomos a perceber
O acento de cada vogal em que divergimos

E também o deslumbramento da dispersão
Provocada pelos lugares de origem da fala
Que vão do latim até ao kimbundo,

Passando pelo tétum, pelo tupi-guarani,
Pelo papiá ou pelo castelhano.
Ou até (porque não?) por esse rumor denso

Da mecânica ultra-pop que nos enche os ouvidos
E que nos alimenta da inconsciência tão útil
Aos que por nós decidem o como mas também o porquê.

O que nos põe de acordo são os momentos de esforço
Em que procuramos perceber o sentido,
A regra íntima com que cada um se diz.


(Este poema foi uma das respostas a um desafio do Henrique: "enviem-me poemas, narrativas breves, aforismos, labirintos, etc., em desacordo com o Acordo Ortográfico".

Também no blog da Frenesi se vai fazendo a resistência, na série "Com acordo ou sem acordo...", na qual Paulo da Costa Domingos lembra o que algumas vozes sensatas disseram sobre o assunto. Por minha sugestão, estão lá Ruben A., Mário Cesariny e Ruy Belo. [entretanto retirados])

20.4.08

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA

EDEN MAR HOTEL


Anoitece.
No promontório a oeste,
as aves do mar parecem adormecidas.
Uma única estrela acende a sua luz sobre o
horizonte,
sobre as lanternas brancas e azuis,
sobre a inquietação dos peixes vermelhos.
Mas nada se ouve.
Ninguém bate à porta,
os amigos são apenas uma palavra vazia,
sepultada para sempre.
Silenciosamente,
duas lágrimas descem o meu rosto,
na varanda deste hotel,
entre as árvores do fogo e a noite em ruínas.
Fecho os olhos.
Dói, às vezes docemente, dói a vida.

(de Quatro Luas, Assírio & Alvim, 2006)