Ainda há quem se acanhe
Com a pronúncia que tem
Sérgio Godinho
O que nos põe de acordo é o que dizemos
E se negamos à palavra o risco de a dizer
Anulamos a marca do que nos une.
Se, acanhados, nos rendemos ao lucro
Do vocábulo premeditadamente correcto,
Cingido por uma técnica limpa e pela lei,
Então recusamos a delicadeza,
Morosa de séculos e paciente,
Que remói cada sílaba e a transporta
Em vasos rústicos e desprezados,
Alheios a ortodoxias gráficas
Ou a gramaticais exigências postuladas.
Como ia dizendo, transportamos cada sílaba
Até um outro rigor – inconsciente, é certo,
Mas marcado pela melodia de que nasceu
E pelo sabor do que pais dizem a filhos,
Do que filhos a pais respondem
Ou do que em locais obscuros se aprende.
O que nos põe de acordo é a vontade
Com que nos dispomos a perceber
O acento de cada vogal em que divergimos
E também o deslumbramento da dispersão
Provocada pelos lugares de origem da fala
Que vão do latim até ao kimbundo,
Passando pelo tétum, pelo tupi-guarani,
Pelo papiá ou pelo castelhano.
Ou até (porque não?) por esse rumor denso
Da mecânica ultra-pop que nos enche os ouvidos
E que nos alimenta da inconsciência tão útil
Aos que por nós decidem o como mas também o porquê.
O que nos põe de acordo são os momentos de esforço
Em que procuramos perceber o sentido,
A regra íntima com que cada um se diz.
(Este poema foi uma das respostas a um desafio do Henrique: "enviem-me poemas, narrativas breves, aforismos, labirintos, etc., em desacordo com o Acordo Ortográfico".
Também no blog da Frenesi se vai fazendo a resistência, na série "Com acordo ou sem acordo...", na qual Paulo da Costa Domingos lembra o que algumas vozes sensatas disseram sobre o assunto. Por minha sugestão, estão lá Ruben A., Mário Cesariny e Ruy Belo. [entretanto retirados])
1 comentário:
Rui, porque não publicas aqui nada mais tu? Tens tão belos!
jinhos
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