20.3.04



Na Fundação Gulbenkian (galeria do piso 0, escadas, hall, galeria do piso 01, casa de banho das senhoras e parte do jardim) pode ser revisitada (ou descoberta) a obra de Antony Gormley.
Numa das instalações deparamo-nos com a figuração de "uma dor apocalíptica e devastadora".
A entrada é gratuita e vale a pena ir ver.
[outros melros XVI]

OLIVIER BRAMANTI

Ça ne vous dérange jamais ?

A ce compte-là, je devrais dessiner des fleurs ! Le monde n'est pas comme ça, il est plein de violence, il ne faut pas se le cacher... L'histoire est pratiquement liée à la guerre. Il y a toujours eu des morts, ça a toujours été représenté. Pendant des siècles, on dessinait Jésus pendant la descente de croix, c'est quand même une représentation qui est forte et même violente. Picasso a bien fait Guernica. Si l'on a quelque chose à dire, il faut l'exprimer. Là, il y avait cette violence exercée sur des villageois par un pouvoir qui avait pour lui l'armée, les milices. La violence, on la trouve partout, même en France.

(de uma entrevista)


Des merles volent vers le sud. «Oiseaux de malheur, ô oiseaux maudits, conduisez-moi sur la plaine!»

(Le Chemin des Merles, amok éditions, 2001)

(Vd. comentário esclarecido aqui)

19.3.04

[SONETOS À SEXTA-FEIRA]

RAINER MARIA RILKE

XXI


Frühling ist wiedergekommen. Die Erde
ist wie ein Kind, daß Gedichte weiß,
viele, o viele... Für die Beschwerde
langen Lernens bekommt sie den Preis.

Streng war ihr Lehrer. Wir mochten das Weiße
an dem Barte des alten Manns.
Nun, wie das Grüne, das Blaue heiße,
dürfen wir fragen: sie kanns, sie kanns!

Erde, die Frei hat, du glückliche, spiele
nun mit den Kindern. Wir wollen dich fangen,
fröhliche Erde. Dem Frohsten gelingts.

O, was der Lehrer sie lehrte, das Viele,
und was gedruckt steht in Wurzeln und langen
schwierigen Stämmen: sie singts, singts!


XXI

Eis outra vez a Primavera. A Terra
é um menino que sabe dizer versos;
tantos, oh tantos... Po aquele esforço
de longo estudo vai receber um prémio.

Severo foi o mestre. Nós gostávamos
da brancura da barba daquele velho.
Agora podemos perguntar o nome
do verde, o azul: ela sabe, ela sabe!

Terra feliz, em férias, brinca agora
co'as crianças. Queremos agarrar-te,
Terra alegre. A mais jovial consegue-o.

Oh, o muito em que o mestre as instruiu
e o impresso nas raízes e nos longos
troncos difíceis: ela o canta, canta!

(de Sonetos a Orfeu - tradução de Paulo Quintela)


RONSARD

Ciel, air et vents, plains et monts découverts,
Tertres vineux et forêts verdoyantes,
Rivages torts et sources ondoyantes,
Taillis rasés et vous bocages verts,

Antres moussus à demi-front ouverts,
Prés, boutons, fleurs et herbes roussoyantes,
Vallons bossus et plages blondoyantes,
Et vous rochers, les hôtes de mes vers,

Puis qu'au partir, rongé de soin et d'ire,
A ce bel oeil Adieu je n'ai su dire,
Qui près et loin me détient en émoi,

Je vous supplie, Ciel, air, vents, monts et plaines,
Taillis, forêts, rivages et fontaines,
Antres, prés, fleurs, dites-le-lui pour moi.


Céu, ar e vento e montes descobertos,
plainos, vinha em socalcos, verdejantes
bosques, nascente e margens ondulantes,
verde ribeiro e vós, matos desertos,

antros de musgo em meia frente abertos,
prado, ervas, flores, de orvalho radiantes,
côncavos vales, praias dardejantes,
rochedos a meu verso abrigos certos,

pois roído ao partir de ira e cuidar,
adeus dizer não soube ao belo olhar
que perto e longe me comove assim,

vos rogo, céu, ar, ventos, plainos, montes,
matos, florestas, margens, antros, fontes,
prados e flores, que lho digais por mim.

(tradução de Vasco Graça Moura)


GARCILASO DE LA VEGA

XXIII

En tanto que de rosa y azucena
se muestra la color en vuestro gesto,
y que vuestro mirar ardiente, honesto
enciende el corazón y lo refrena;

y en tanto que el cabello, que en la vena
del oro se escogió, con vuelo presto,
por el hermoso cuello blanco, enhiesto,
el viento mueve, esparce y desordena;

coged de vuestra alegre primavera
el dulce fruto, antes que el tiempo airado
cubra de nieve la hermosa cumbre.

Marchitará la rosa el viento helado,
todo lo mudará la edad ligera,
por no hacer mudanza en su costumbre.


XXIII

Enquanto que de rosa e açucena
se revela o matiz no vosso gesto,
e que o vosso olhar ardente, honesto,
o coração inflama e o serena;

e enquanto esse cabelo, que na plena
veia de ouro se escolheu, em voo lesto
no alvo colo, formoso e manifesto,
o vento move, esparge e desordena:

colhei da vossa alegre primavera
o doce fruto, antes que o tempo irado
cubra de neve o deslumbrante cume.

Fará murchar a rosa o ar gelado,
tudo a idade irá mudar, severa,
p'ra não fazer mudança em seu costume.

(tradução de José Bento)


DANTE ALIGHIERI

Io mi senti' svegliar dentro a lo core
un spirito amoroso che dormia:
e poi vidi venir da lungi Amore
allegro sì, che appena il conoscia,

dicendo: «Or pensa pur di farmi onore»;
e ciascuna parola sua ridia.
E poco stando meco il mio segnore,
guardando in quella parte onde venia,

io vidi monna Vanna e monna Bice
venir invêr lo loco là ov'io era,
l'una appresso de l'altra maraviglia;

e sì come la mente mi ridice,
Amor mi disse: «Quell'è Primavera,
e quell'ha nome Amor, sì mi somiglia».


Senti que despertava no meu peito
um espírito amoroso que dormia:
vi vir Amor de longe a mim direito,
e assim tão ledo mal o conhecia,

dizendo "Pensa pois render-me preito";
e palavra a palavra Amor se ria.
E estando então com um senhor, espreito
pouco depois pra lá donde saía

senhora Vanna vi, senhora Bice
que vinham ao lugar aonde eu era,
maravilha uma a outra assim unida;

e tal como se a mente o repetisse
Amor me disse: "Aquela é Primavera,
e Amor se chama a outra a mim parecida."

(de Vita Nuova - tradução de Vasco Graça Moura)
Se apagares essa luz consegues ver-me?

18.3.04

[calha bem: a Cotovia está a fazer preços simpáticos em livros manuseados]

CHARLES TOMLINSON

A LIÇÃO


Este ano, as cotovias
voam tão cedo e tão alto,
significando, dizes, que este Verão
vai ser quente e seco,
e quem sou eu
para discutir tal profecia?
Vinte anos aqui passados ainda não
me ensinaram a ler com precisão
nem os sinais da terra nem os sinais do céu:
continuo com o olhar de um recém-chegado,
um olhar citadino:
contudo há ainda tempo
para aprender mais coisas
sobre a estação e o canto:
Verão após Verão

(tradução de Gualter Cunha, in Poemas, edições Cotovia, 1992)

17.3.04

W. B. YEATS

Nasceu em Geogeville, perto de Dublin, em 1865.
Viajou pelos EUA e pela Itália. Recebeu o Prémio Nobel em 1923.
Morreu em 1939.

ACERCA DE UMA CASA AMEAÇADA PELA AGITAÇÃO DA TERRA

Como seria mais feliz o mundo se esta casa,
Onde paixão e rigor se fundiram em
Tempos imemoriais, em ruínas transformada
Deixasse de criar o olho sem pálpebras que ama o sol?
E os doces e alegres pensamentos de águias que crescem
Onde asas contêm memória de asas, tudo
O que vem do melhor se une ao melhor? Embora
Os pobres pilares mais fortes na queda se tornassem,
Que grande sorte teria de ser a sua para alcançar
Os dons que governam os homens, e mais ainda
O último dom do Tempo sucessivo, discurso escrito
Forjado em alto riso, encanto e paz?

(de The Green Helmet and Other Poems, 1910)

MEDITAÇÃO EM TEMPO DE GUERRA

Numa pulsação de artéria,
Sentado naquela velha pedra cinzenta,
Debaixo da velha árvore quebrada pelo vento,
Soube que o Uno é animado,
A humanidade inanimada fantasia.

(de Michael Robartes and the Dancer, 1921)
(traduções de José Agostinho Baptista, in Uma Antologia, Assírio & Alvim, 1996 - documenta poetica)

SEM SEGUNDA TRÓIA

Não a censuro pelos sofrimentos
De que me encheu a vida, ou por tentar
Levar a turba a gestos tão violentos,
Ou a ruelas contra as ruas atirar
Se o desejo lhes desse o atrevimento.
Não a deixa ser plácida a nobreza
Que lhe apurou, qual fogo, o pensamento,
E o arco tenso que é a tua beleza,
Fora do natural da nossa era,
Por sublime e solitária e austera.
Sendo o que é, que podia ela fazer,
Sem outra Tróia para pôr a arder?

(de The Green Helmet and Other Poems, 1910)

O GRANDE DIA

Viva a revolução e mais tiros de canhão!
Um mendigo a cavalo chicoteia um mendigo a pé.
Viva a revolução o canhão que voltou!
Os mendigos mudam de lugar, o chicote ficou.

O QUE SE PERDEU

Canto o que se perdeu, temo o que se ganhou,
Entro numa batalha uma vez mais travada,
Meu rei um rei perdido, perdidos meus soldados;
Corram os passos para Poente ou Madrugada,
Batem sempre sobre a mesma pedra de nada.

(de Last Poems, 1936-1939)
(traduções de Joaquim Manuel Magalhães e Maria Leonor Telles, in As Escadas não têm Degraus 3 - Março de 1990, livros Cotovia)
G. K. CHESTERTON

W. B. É talvez o melhor conversador que jamais encontrei, excepto talvez o pai dele, coitado, mas esse não conversará mais na sua taberna terreal, já que se encontra, assim o espero, conversando no Paraíso. Entre vinte outras qualidades, ele possuía uma coisa muito rara contudo real; um estilo absolutamente espontâneo. As palavras não saltavam como água da sua boca, da mesma maneira que os tijolos não saltam para formar uma casa; na sua boca as palavras acendiam-se, simplesmente, como claridade, como se fora possível construir uma catedral com a rapidez com que um prestigitador constrói um castelo de cartas. Uma frase extensa, equilibrada e elaborada, com ramificações alternativas ou antitéticas, fluía na sua boca, com as exactas palavras chovendo no lugar exacto, com a mesma inocência e prontidão com que a maior parte das pessoas diria que o dia estava bonito ou que os jornais traziam uma notícia cómica.

(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)

16.3.04

GÊMEO???

Que estranha razão poderá levar um português a transcrever um poema de Fernando Pessoa em versão brasileira?
Hoje recuperei algum do meu tempo perdido: comprei, duma só vez, três cêdês, três [ó aliteração!] dos Tindersticks.

15.3.04

Uma bela desculpa para chegar duas horas atrasado do almoço:

...é que hoje fiz uns amigos e coisa mais preciosa no mundo não há.
[outros melros XV]

TONINO GUERRA

CANTO DÉCIMO OITAVO


Quando o melro de Pídio, o sapateiro,
fugiu da gaiola, nós o esperávamos
no pátio e cada sombra que passava
parecia ele. E no entanto não era.

Até que uma tarde, na sebe de canas,
qualquer coisa negra baloiçava
mirando-nos com uns olhitos que pareciam pontas de navalha.
Então afastámo-nos da janela
e fingimos deslocar nossas cadeiras.

(de O Mel, tradução de Mário Rui de Oliveira, Assírio & Alvim, 2003 - documenta poetica)

14.3.04

errata

Uma sucessão infeliz de falsas mnemónicas fez com que eu passasse os últimos dias convencido que era hoje que José Blanc de Portugal e Ruy Cinatti fariam anos. De facto, ambos nasceram no mesmo dia em anos diferentes, que era, na realidade, 8 de Março.
JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

O vento leste soprou desabrido
sob o nítido Sol em céu imaculado.

Sobre pedras duras, entre casas altas
mosqueadas pelas injúrias de acrescentados anos,
o Caminhante faz por esquecer as próprias dores
com a esperança de um feliz encontro e,
estranhamente,
quanto mais intensa a dor
mais eficazmente lha mitiga
a esperança.

29.III.90

(de Quaresma Abreviada, Black Sun editores, 1997)
RUY CINATTI

GANDHI I


Isto da violência
tem que lhe diga
quando os tais violentos
a negam e julgam.

A justiça impera
na terra, nos céus.
De Deus, a justiça.
Nos homens, a fome.

Gandhi foi, entre outros,
o mor paladino
dos tempos modernos
da justiça e amor.

Vê-lo debruçado
sobre a justa causa.
Ouvi-lo falar
do leite da vaca...

Grandes são os santos,
soldados, poetas.
A nossa derrota,
mas que grande festa!

As chamas alteiam.
Cheira a pau de sândalo.
Sobre Babilónia
as luzes apagam-se.

14/7/83

CONTENCIOSO

Ide, canções minhas, proclamai
o estado de sítio
com reflexos d'água, informais
em papel de seda,
porque não em seda crua?!...

Ela virá então nua
com ademanes fatais,
lembrar que a paz não se alcança
com violência,
corrupção, incompetência
e outras curiosas experiências
habituais no meu país.

O presidente ficará em Belém.
O primeiro ministro reabita Sintra.
Propositadamente,
a bem do cidadão,
criar-se-á o Ministério da Qualidade de Vida
para satisfazer as necessidades
de outro cidadão menos pateta.

Lorpas, imbecis,
farroupilhas, tontos,
que assim deixais à vontade
o desgraçado do poeta!

Reclassificai-o já, baixai-lhe a letra.
Que se reforme ou peça baixa médica!

Ela, entretanto, a mais que bela,
debruçar-se-á da janela
dar-lhe-á a sua bênção.

E vero!

14/7/83

(poemas inéditos, dactilografados e fotocopiados pelo Autor para serem distribuídos na rua ou aos amigos que o visitavam)
EDUARDO GUERRA CARNEIRO

RUY CINATTI


Cinatti veste roupão de seda japonês
na Travessa da Palmeira. De samurai travestido,
o sabre desembainha e salta no sobrado.
Fala-me depois de Guevara, de Cristo,
e da Virgem de Macarena de Sevilha.
Brande agora um rosário e brandy
serve. Abre a janela de repelão
e recomeça as sagas de Timor.
Recusa um charro mas conta d'outras
passas nos reinos do Oriente.
Atira ao ar as folhas dos poemas e pagelas
com santinhos. Impaciente enxota-nos.
Mas volta ao patamar da escada, aos berros,
para dizer que o chá abriu.

(de Contra a Corrente, & etc, 1988)
José Blanc de Portugal (1914-2000) e Ruy Cinatti (1915-1986), fundadores dos Cadernos de Poesia, nasceram ambos a 8 de Março. Ambos escreveram poemas como quem tira as sandálias no deserto.
O QUE PODERÁ SER A NOITE?

Não acabará o dia ao amanhecer da idade lenta,*
nem precisaremos de saber dos silêncios que se repetem.

Não há equilíbrio em saber dizer nomes semelhantes
a tudo o que não vemos. Porém fumamos como quando
éramos apenas pobres à procura de mais sonhos que
nos fizessem lembrar terras e tempos
mais remotos e simples.

Na memória estão ainda as palavras e o que elas dizem
demoradamente.
________________
*verso de um poema de Francisco José Viegas, que faz hoje anos.