5.9.09

LUÍS BRITO PEDROSO

MANHÃ


Caminho pelo granito de mil cidades e pergunto-me:
será que a manhã acabou?
Durante a manhã não importa em que cidade estamos.
Apenas aquela que vemos

Durante a manhã não sabemos sequer que existimos
Vivemos uma extensão do sonho
do sono
Mas parece que a manhã está a findar

Ao pisar essa pedra pensei:
preciso de um lugar onde me possa esconder do fim
da manhã
Onde não possa ser detectado pelo meio-dia
e tudo o resto demore mais a chegar

Espero pela noite mas vou visitando a madrugada.

(de O Meu Nome e a Noite, Papiro editora, 2007)

4.9.09

ISABEL FRAGA

O LAGO


Os remos afundaram-se
No olhar do lago

Levando ao longo
Das raízes líquidas
O peito estreito e fundo
Onde cabíamos

Perdi o tempo
 beira da consciência
Onde fiquei
Rocha, frágil, areia
Tocando aquele olhar
Doído e claro
Que o sol tornava
O espaço
De todos os sons

Por muitos meses
Busquei os pássaros
E os peixes

Para reconhecer
Um pouco de alma
Na imagem fria
E alongada
Que bebiam

Quando por vezes
No corpo
Do céu líquido
Se olhavam estranhos
Parecendo conhecer-se.

(de Face, Gota de Água / Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984 – colecção Plural)

3.9.09

VICENTE ALEIXANDRE

O MAR LIGEIRO


O mar fustiga asperamente o ruído das botas
que passam sem receio de pisar os rostos
daqueles que ao beijarem-se sobre a areia lisa
tomam a forma de conchas bivalves.

O mar rebenta sozinho como um espelho,
como uma ilusão de ar,
esse cristal a prumo onde a secura do deserto
finge uma água ou um rumor de espadas perseguindo-se.

O mar, encerrado num cubo,
desencadeia a sua fúria ou uma gota prisioneira,
coração cujos bordos inundariam o mundo
e que só podem estancar-se com um sorriso ou um limite.

O mar palpita como a flor do cardo,
como essa facilidade de voar aos céus,
aérea ligeireza do que a nada se prende,
leve arfar dum peito juvenil apenas.

O mar ou enfeitiçada pluma,
ou pluma desatada,
ou gracioso descuido,
o mar ou pé veloz
que encerra o abismo e foge de corpo ligeiro.

O mar ou palmas frescas,
as que gostosamente se deixam nas mãos das virgens,
as que repousam nos peitos esquecidos das profundidades,
deliciosa superfície que um suave vento faz ondular

O mar ou talvez o cabelo,
o adorno,
o derradeiro toucado,
a flor que balança numa fita azulada,
da qual, se se desata, voará como pólen.

(de A Destruição ou o Amor, tradução de Luís Pignatelli, publicações Dom Quixote, 1977 – poesia século XX)

2.9.09

EGITO GONÇALVES

Que resgato com o poema?

Que amálgama de sóis, sangue,
domínio de cinzas recupero?

Que aniquilo com o poema?

Que sobe em mim ao grito da distância,
ao apelo telefónico dum estribilho,
à gasta, espira dum disco de adeleiro?
Que compro com o poema?

A força de enfrentar a solidão
que ignorava? O desfrute
de abandonar o abismo que me extraiu
o sumo?

Que poema cavalgo?,
ou sento-me no chão?

(de O Fósforo na Palha, publicações Dom Quixote, 1970 – cadernos de poesia)

1.9.09

THOM GUNN

Sempre ao Redor


O mundo do faroleiro é redondo,
os seus haveres erguendo-se num círculo
— Lá dentro tudo o que o homem pode desejar,
Uma mulher, um rádio, pão, geleia, sabão;
Porém, aos poucos a sua esperança fatigada
Irrompe para viver sobre o som
Que as ondas rodopiando fazem ao rebentar
À custa do seu próprio esforço
— O mundo do faroleiro é redondo.

Interroga-se, subindo a escada em caracol
para dirigir a lanterna que ilumina os barcos,
Por que razão aquilo que sempre foi dele se ergue
Com o rosto voltado para o centro;
Dos livros, amontoados nas mesas, aprendeu
Que os mundos do litoral são também redondos, não quadrados,
Mas lá as coisas dançam com os rostos voltados
Para o exterior rostos de medo e dúvida?
Interroga-se, subindo a escada em caracol.

Quando há acalmia, são seguros os rochedos
Para fazer um pouco de exercício,
Mas tudo o que faz é fixar os seus olhos
Sobre aquele totem enorme de onde saiu
E onde os pensamentos dançam em redor do que não mudará
— O seu secreto e silencioso desgosto.
As ondas não têm sol, mas são apanhadas pelos raios
Ao rolarem mais abaixo dos seus pés, perverso sal,
Quando, numa acalmia, são seguros os rochedos.

(in Destruição do Nada e outros poemas, tradução de Maria de Lourdes Guimarães, Relógio d’Água, 1993)

31.8.09

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

JORGE DE SENA E A RÁDIO MACAU


1.

Devagar, registando como tão facilmente poderia
esquecê-lo, fugiu de quê? Não sabe, ou não quer
responder? Favorecido pelo estrondo nocturno
das trovoadas e por urna língua que desconhece,
a sorrir manso, como se quisesse entender.

Foi a sua prática semanal e como se desembaraçou
da leitura! Outros se exilaram por razões
sérias e para cidades menos levianas, sem
preencher formulários e com dietas estreitas.
Renegou de vícios pequenos, supondo atingir a evidência

– uma configuração de alma sem acidentes,
uma vontade como terra de sequeiro e a memória
um filme mudo: poupando o álcool dos nervos,
que a procissão do tempo lhe fosse sendo escrita.

2.

Pudesse surgir da música um sopro deserto
e um destino imprevidente, náufrago que se obstina
em regressar do fundo até se agarrar a um destroço,
segue à deriva, repetindo trambolhões e quedas:
quem se condoeu dessa carta, quem esmolou

medida e regra? Por mais que o pão fosse
de trigo e a mesa trôpega, poderia recordar
quem lhe curou a sede, desprezar quem lhe compôs
cama de giesta? Alguém teria sempre melhor
razão do que a que tinha, ou maior queixa?

Uma história que ignorou auspícios, as dores
pequeninas de quem ficou em terra, por ter pontual
o relógio dos intestinos e a estrela dos navios
e a morada, como qualquer outra, incerta.

(de Mais Tarde, Assírio & Alvim, 2003)

30.8.09

PAUL ÉLUARD

GRITAR


Aqui a acção simplifica-se
Derrubei a paisagem inexplicável da mentira
Derrubei os gestos sem luz e os dias impotentes
Lancei por terra os propósitos lidos e ouvidos
Ponho-me a gritar
Todos falavam demasiado baixo falavam e escreviam
Demasiado baixo

Fiz retroceder os limites do grito

A acção simplifica-se

Porque eu arrebato à morte essa visão da vida
Que lhe destinava um lugar perante mim

Com um grito

Tantas coisas desapareceram
Que nunca mais voltará a desaparecer
Nada do que merece viver

Estou perfeitamente seguro agora que o Verão
Canta debaixo das portas frias
Sob armaduras opostas
Ardem no meu coração as estações
As estações dos homens os seus astros
Trémulos de tão semelhantes serem

E o meu grito nu sobe um degrau
Da escadaria imensa da alegria

E esse fogo nu que me pesa
Torna a minha força suave e dura

Eis aqui a amadurecer um fruto
Ardendo de frio orvalhado de suor
Eis aqui o lugar generoso
Onde só dormem os que sonham
O tempo está bom gritemos com mais força
Para que os sonhadores durmam melhor
Envoltos em palavras
Que põem o bom tempo nos meus olhos

Estou seguro de que a todo o momento
Filha e avó dos meus amores
Da minha esperança
A felicidade jorra do meu grito

Para a mais alta busca
Um grito de que o meu seja o eco

(in Algumas das palavras, tradução de António Ramos Rosa e Luiza Neto Jorge, 2ª ed.: publicações Dom Quixote, 1977 – poesia século XX)