3.9.09

VICENTE ALEIXANDRE

O MAR LIGEIRO


O mar fustiga asperamente o ruído das botas
que passam sem receio de pisar os rostos
daqueles que ao beijarem-se sobre a areia lisa
tomam a forma de conchas bivalves.

O mar rebenta sozinho como um espelho,
como uma ilusão de ar,
esse cristal a prumo onde a secura do deserto
finge uma água ou um rumor de espadas perseguindo-se.

O mar, encerrado num cubo,
desencadeia a sua fúria ou uma gota prisioneira,
coração cujos bordos inundariam o mundo
e que só podem estancar-se com um sorriso ou um limite.

O mar palpita como a flor do cardo,
como essa facilidade de voar aos céus,
aérea ligeireza do que a nada se prende,
leve arfar dum peito juvenil apenas.

O mar ou enfeitiçada pluma,
ou pluma desatada,
ou gracioso descuido,
o mar ou pé veloz
que encerra o abismo e foge de corpo ligeiro.

O mar ou palmas frescas,
as que gostosamente se deixam nas mãos das virgens,
as que repousam nos peitos esquecidos das profundidades,
deliciosa superfície que um suave vento faz ondular

O mar ou talvez o cabelo,
o adorno,
o derradeiro toucado,
a flor que balança numa fita azulada,
da qual, se se desata, voará como pólen.

(de A Destruição ou o Amor, tradução de Luís Pignatelli, publicações Dom Quixote, 1977 – poesia século XX)

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