8.2.12


RUI COSTA


BREVE

Esta manhã comecei a esquecer-me de ti.
Acordei mais cedo que nos outros dias
e com o mesmo sono.
A tua boca dizia-me "bom dia" mas não:
não o teu corpo todo como nos outros dias.
As sombras por aqui são lentas e hoje não
comprei o jornal: o mundo que se ocupe da
sua própria melancolia.
ontem, há uma semana, há muitos meses.
um ano ensina ao coração o novo ofício:
a vida toda eu hei-de esquecer-me de ti.


A MATÉRIA DO AR

Bom dia. Também eu sou feito de marfim.
Estes são os meus amigos d'hoje: folhedo
para entreter as mãos, pontas de madeira
grossa para depois comer. Hoje havia água
e a minha boca é cheia.
Nunca o mínimo deus me salvou.

Nem luz nem a treva. Às vezes, de madrugada,
visito as mulheres que lavam e que cantam.
Trabalho com elas e há um forno transparente
onde cozer o pão. Depois elas perguntam sempre
quem sou e eu respondo: sou alguém que come pão
e que se senta fora da casa com as mãos na terra.
E elas começam a cantar e nunca me falam de
amor.

Ainda tenho pensamentos mas já não os penso.
Falo como o sono nutre a sua teia e o seu
veneno. Só os bichos da terra e os que andam
no céu são brancos. E digo:
Acende uma fogueira ao que sobrar do
mundo.


(de A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, edições Quasi, 2005 – biblioteca Uma Existência de Papel)


DESPERADO

O índio não percebe o cowboy e o cowboy não percebe a mãe. A mãe do cowboy é católica, fala para dentro, tem dentes de cereja que as visitas engolem com os olhos, como crianças tolas com as mãos todas que merecem. A mãe é católica mas nunca se queixa porque gosta de índios e cowboys, propendendo igualmente a um pequenino gozo com a incomodidade que o progresso recicla. Não lava as mãos, coça a barriga, pensa noutra coisa quando lhe destróis o dia. A mãe do índio grita mais ainda e eis que a lua começa. Do lado do sol, a mãe do cowboy enche-se de esgrimas e reza com grinaldas nas orelhas entre veredas finas. O amor da mãe pelo filho é uma luta entre o sol e a lua, com estepes ao fundo onde esquecemos tudo o que passamos a vida a perder.


(de O pequeno-almoço de Carla Bruni, Ayuntamiento de Punta Umbría / Livrododia, 2008 – colección Palabra Ibérica)


ACIDENTE I
[HELDERIANA VIRULENTA]

eu às vezes apetece-me que vocês sejam felizes hoje,
roubando aos bocados. Com gotas de sono a morder alto,
rebentando nas asas.
Às vezes procuro chamar a atenção, isto é, por vezes decido morrer
para sempre. Sem anzóis a cair dos braços movendo o ritmo do ar.
E sem pena, horizontal a tudo. Então costumo ver os amigos encostados
uns aos outros, lavando árvores. Ou entrando pelo sangue, com as mãos
todas a dar olhos.
lembro-me de vocês quando decido morrer para sempre.
E quando sou eterno, comendo folhas sentado.
Sei que há paredes brancas onde as éguas não entram. Ficamos
às vezes à conversa nos rios infinitos, chorando lentamente
uma felicidade louca. E somos loucos perguntando, chovendo
no coração louco. E nada existe que não seja apavorado e
tremendo.

Mas tu sabes. Eu quero que tu oiças. As nuvens são inteligentes
e é por elas que as nossas mãos recebem. Por tudo quanto não existe,
pondo pedras demoradas junto ao lugar do amor. Tantos mortos,
dizes,
órgãos repartidos por tanta nenhuma coisa. Nada. Tanto.
Eu sou louco e compreendo. Eu tenho o meu orgulho e a minha força.
Canso-me. Uso as minhas mãos. Deixo o coração ser alternado
e comestível. E o vento passa lá fora e eu passo cá dentro e lá fora.
E sigo o rumo das papoilas e digo que amo as coisas raras.
Neste extremo lugar dos homens,
                                                           coroado de tudo.


A MINHA BISAVÓ

A minha bisavó
é um quadro na parede.
Roída pela traça, ela
sucumbe à dentição do tempo
nos seus olhos escuros de
discreta bruxa.
Um dia a minha bisavó
nem quadro há-de ser.
Continuará, apesar disso, a beber
a água do copo onde lavou
as cerejas (fingindo-se distraída)
e a arrazoar antes da visita
extemporânea aos vizinhos:
«se gostarem da visita, ficamos
todos contentes, se não gostarem
é muito bem feita».

A minha bisavó hoje não responde
Mas há um par de meias novas na
minha memória, um prato de
cerejas.


MEDO

Furo-te os olhos com os dedos magoados
como-te
torpor de medo as luas verdes
mordem-me a boca
do teu peito sobe o halo nacarado
a essência fútil das flores mortas
e novamente o medo
de nunca mais voltar a ser perfeito


(de As Limitações do Amor são Infinitas, Sombra do Amor edições, 2009)

6.2.12


RUI ALMEIDA

[em memória da Bia]

AS GATAS

A que está prenha é branca
E estende a pata da frente,
Deitada na mesa
No lugar onde a frincha dos cortinados
Permite uma faixa de sol.

As duas pequenas brincam,
Descobrindo cada pormenor do mundo,
Brigam em cima do tapete colorido,
À vista da mãe que lhes dedica
A mais felina indiferença.

É um outro silêncio o abrigo
De cada uma;
Este é o seu tempo,
O que lhes sustenta a vida


(de Caderno de Milfontes, no prelo)




5.2.12


FERNANDO LANHAS


auto-retrato, 1973

JOSÉ VIALE MOUTINHO


HOMENAGEM AO PINTOR FERNANDO LANHAS
  
1

dele é o grande livro dos astros
as linhas da idade pertencem-lhe
assim como todos os museus da terra
e o crânio do homem de cromagnon

vejamos as horas que restam no saber
do tempo nestes relógios de sol vivo
como evoluiu o linho o trigo o milho
quanto vale um minuto isolado por aí

como se passa da cor à ausência dela
no espelho das cinzas nos tecidos
o fogo acabado de descobrir os olhos
postos numa boneca de louça antiga

esquece-se das chaves do automóvel
as casas suspensas nos estiradores
uma porta que não existe ainda oca
tudo tão relativo como a ampulheta


2

servem-nos os melhores vinhos o lápis
que traduz o chapéu de palha da madeira
essa estrada por entre os arvoredos
deus se existe vai no porta-bagagens

adiante no tablier ninguém escuta as
perdas e os danos o inquieto barro
que se permite no largo de s. joão novo
num palácio de nasoni entre muralhas

de que me lembro e aonde devo guardar
este barco dos anos trinta este folheto
de monstros de há trezentos anos a lua
naquele tempo não imaginava a sua morte

quantas vezes voltamos ao lugar onde
nem a sibila adivinharia as sombras
com os nossos números de ordem astros
de um universo perdido nas palavras


(desenho e poema in Retrato de Braços Cruzados, editorial Caminho, 1989)