19.5.12

JORGE DE SENA


O BECO SEM SAÍDA, ou EM RESUMO...

I

As mulheres são visceralmente burras.
Os homens são espiritualmente sacanas.
Os velhos são cronologicamente surdos.
As crianças são intemporalmente parvas.
Claro que há as excepções honrosas.

II
As pedras não são humanas.
Os animais não são humanos.
As plantas não são humanas.
Os humanos é que têm algo deles todos:
o que não justifica o panteísmo,
nem a chamada «Criação».

III
Humanamente feitas são as coisas,
e as ideias, as obras de arte, etc.
mas que diferença há entre ser-se uma besta na Ilíada
ou no Viet-Nam?

IV
Há por certo os poetas, os santos, e gente semelhante
(os heróis, que os leve o diabo)
- mas desde sempre, em qualquer língua,
qualquer das religiões (ilustres ou do manipanso),
fizeram o mesmo, disseram o mesmo, morreram igual,
e os outros que nascem e vivem e morrem
continuam a ser a mesma maioria triunfal
de filhos da mãe.

V
Que haja Deus ou não
e a humanidade venha a ser ou não
e os astros sejam conquistados (ou não)
apenas terá como resultado o que tem tido:
uma expansão gloriosa do cretino humano
até ao mais limite.

VI
A vida é bela, sem dúvida:
sobretudo por não termos outra,
e sempre supormos que amanhã se entrega
o corpo que já ontem desejávamos.

VII
O poeta Rimbaud anunciava o tempo dos assassinos.
Sempre foi o tempo dos assassinos
- e mesmo um deles é o que ele era.

VIII
Gloriosos, virtuosos, geniais,
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Ignorados, viciosos ou medíocres,
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Do primeiro, do segundo, do terceiro ou quarto sexo:
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Em Neanderthal, Atenas, ou em Júpiter
- burros, sacanas, surdos, parvos.

IX
Canção, se te culparem
de infame e malcriada,
subversiva ou não,
ou de, mais que imoral, desesperada;
se te disserem má, mal inventada,
responde que te orgulhas:
humano é mais que pulhas
e mais que humanidade mal lavada.

15/10/1970


(de Exorcismos, 1972)

17.5.12


[outros melros LXIV] 


ANTÓNIO DE MACEDO PAPANÇA, CONDE DE MONSARAZ


A CALMA

O sol caustica a prumo a rústica devesa!
Exala-se da terra um bafo ardente; o gado,
Sedento, mal resfolga à sombra do montado,
Nas fulvas crispações dessa fornalha acesa.

Canta, refresca o ouvido a água na represa
Da azenha e ao longe a voz dum melro fatigado
Quebra, de quando em quando, o silêncio pesado
Da sesta, que adormenta em roda a natureza -

Arquejam, bico aberto, as galinhas e os patos;
E eu que, a escorrer suor, abro os olhos a custo,
Esperguiço-me, acordo, e artista como um grego,

O meu olhar pagão vê, através dos matos,
Mover-se o corpo nu, elástico, robusto,
Dum filho do moleiro a chapinhar no pego.


(de Musa Alentejana, 1908)