4.8.04
Maria Filomena Mónica revela hoje, no Público, "O Diário Secreto de Santana Lopes com a Idade de 48 Anos", onde, às tantas afirma: «(...)o Prof. [Boaventura] Sousa Santos declarava estar "Portugal no grau zero das alternativas". Se fosse a ele, estava caladinho. Caso contrário, ainda divulgo os poemas que publicou, num livrinho chamado Têmpera, editado pela Centelha, em 1980, sobre as "rachas das meninas".»
Antecipando a ameaça, passo a transcrever, do referido livro, um excerto (o poema é longo...) da
ODE À INFÂNCIA
(...)
são muitas as horas da tarde
quando as mãos do último cigarro
esfregam em louro
o triunfo sobre a autoridade
a moral escarpada da verdura
resvala dos cerros como a lua nova
alagada de medo
escancaram-se as cancelas
das secretas construções
nas ruínas do ciclone de quarenta
trabalhos manuais sem mestre nem montra
entram chefes guerras caracóis
tesouras e pauzinhos
nas rachas das meninas
na catequese é em coro
e em filas
no escuro dos intervalos
medem-se as pilas
Boaventura tens quebranto
dois te puseram três te hão-de tirar
se eles quiserem bem podem
são as três pessoas da Santíssima Trindade
que é Pai, Filho e Espírito Santo
mexo nos anos sinto nas mãos
a moleza da cera não fere
alastra
(...)
[o livro em questão é o nº 33 da colecção Nosso Tempo, que foi antecedido por Afluentes de Abril do conhecido advogado Celso Cruzeiro - apesar disso dessa colecção também fazem parte livros notáveis da poesia portuguesa dos anos 70]
Antecipando a ameaça, passo a transcrever, do referido livro, um excerto (o poema é longo...) da
ODE À INFÂNCIA
(...)
são muitas as horas da tarde
quando as mãos do último cigarro
esfregam em louro
o triunfo sobre a autoridade
a moral escarpada da verdura
resvala dos cerros como a lua nova
alagada de medo
escancaram-se as cancelas
das secretas construções
nas ruínas do ciclone de quarenta
trabalhos manuais sem mestre nem montra
entram chefes guerras caracóis
tesouras e pauzinhos
nas rachas das meninas
na catequese é em coro
e em filas
no escuro dos intervalos
medem-se as pilas
Boaventura tens quebranto
dois te puseram três te hão-de tirar
se eles quiserem bem podem
são as três pessoas da Santíssima Trindade
que é Pai, Filho e Espírito Santo
mexo nos anos sinto nas mãos
a moleza da cera não fere
alastra
(...)
[o livro em questão é o nº 33 da colecção Nosso Tempo, que foi antecedido por Afluentes de Abril do conhecido advogado Celso Cruzeiro - apesar disso dessa colecção também fazem parte livros notáveis da poesia portuguesa dos anos 70]
3.8.04
MARGUERITE DURAS
- Despache-se a falar. Invente.
Ela fez um esforço, falou quase alto no café ainda deserto.
- O que seria preciso era habitar uma cidade sem árvores as árvores gritam quando há vento aqui há sempre sempre à excepção de dois dias por ano no seu lugar está a ver eu iria embora daqui não ficaria aqui todos os pássaros ou quase todos são pássaros do mar que se encontram mortos depois das tempestades e quando a tempestade pára e as árvores deixam de gritar ouvimo-los gritar sobre a praia como degolados isso impede as crianças de dormir não eu ia-me embora.
Ela deteve-se, os olhos ainda fechados pelo medo. Ele olhou-a com uma grande atenção.
(excerto de Moderato Cantabile, 4ª ed.: Difel, 2002 - tradução de Flora Larsson e Ana Paula Laborinho)
- Despache-se a falar. Invente.
Ela fez um esforço, falou quase alto no café ainda deserto.
- O que seria preciso era habitar uma cidade sem árvores as árvores gritam quando há vento aqui há sempre sempre à excepção de dois dias por ano no seu lugar está a ver eu iria embora daqui não ficaria aqui todos os pássaros ou quase todos são pássaros do mar que se encontram mortos depois das tempestades e quando a tempestade pára e as árvores deixam de gritar ouvimo-los gritar sobre a praia como degolados isso impede as crianças de dormir não eu ia-me embora.
Ela deteve-se, os olhos ainda fechados pelo medo. Ele olhou-a com uma grande atenção.
(excerto de Moderato Cantabile, 4ª ed.: Difel, 2002 - tradução de Flora Larsson e Ana Paula Laborinho)
2.8.04
JOSÉ AFONSO
Por Trás Daquela Janela
Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão
Não pôs cravos na lapela
Por trás daquela janela
Nem se ouve nenhuma estrela
Por trás daquele portão
Se aquela parede andasse
Se aquela parede andasse
Eu não sei o que faria
Não sei
Se a minha faca cortasse
Se aquela parede andasse
E grito enorme se ouvisse
Duma criança ao nascer
Talvez o tempo corresse
Talvez o tempo corresse
E a tua voz me ajudasse
A cantar
Mais dura a pedra moleira
E a fé, tua companheira
Mais pode a flecha certeira
E os rios que vão pró mar
Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão
Na noite que segue o dia
Na noite que segue o dia
O meu amigo lá dorme
De pé
E o seu perfil anuncia
Naquela parede fria
Uma canção de alegria
No vai e vem da maré
Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão
Não pôs cravos na lapela
Por trás daquela janela
Nem se ouve nenhuma estrela
Por trás daquele portão
(do álbum Eu vou ser como a toupeira, 1972)
Por Trás Daquela Janela
Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão
Não pôs cravos na lapela
Por trás daquela janela
Nem se ouve nenhuma estrela
Por trás daquele portão
Se aquela parede andasse
Se aquela parede andasse
Eu não sei o que faria
Não sei
Se a minha faca cortasse
Se aquela parede andasse
E grito enorme se ouvisse
Duma criança ao nascer
Talvez o tempo corresse
Talvez o tempo corresse
E a tua voz me ajudasse
A cantar
Mais dura a pedra moleira
E a fé, tua companheira
Mais pode a flecha certeira
E os rios que vão pró mar
Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão
Na noite que segue o dia
Na noite que segue o dia
O meu amigo lá dorme
De pé
E o seu perfil anuncia
Naquela parede fria
Uma canção de alegria
No vai e vem da maré
Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão
Não pôs cravos na lapela
Por trás daquela janela
Nem se ouve nenhuma estrela
Por trás daquele portão
(do álbum Eu vou ser como a toupeira, 1972)
1.8.04
[Faz hoje 27 anos que morreu o cardeal Cerejeira]
MÁRIO BEIRÃO
FALA DUM PASTOR
(NA GRANDE FESTA DE BEJA)
(Ao Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Gonçalves Cerejeira)
Aqui, neste solene descampado,
- Plaino de cismas e melancolia -
Tudo se volve a Deus; tudo irradia
Graça, Esperança, Espírito Sagrado:
E, nos sulcos abertos pelo arado,
Germina luz, um sonho, um novo dia;
E, do ocaso na mística elegia,
Brilham as chagas do precioso Lado!
Esta é a planície, que o silêncio embala,
- A grã planície, resplendente de oiro...
Que ela desperte ao som da vossa fala!
- Ó Príncipe da mais augusta igreja,
Por vosso influxo, a um gesto imorredoiro,
O pão do amor multiplicado seja!
(de O Pão da Ceia, edições Ática, 1964)
JORGE DE SENA
De púrpura andas vestido
Que Roma te concedeu
para que humilde defendas
o direito dos humildes
em Terras de Portugal.
Ai cardeal, cardeal!
Mas a mitra que te cobre
não te dói mais que os espinhos
na cabeça do teu Mestre.
Doem-te os cornos dos ricos
das terras de Portugal.
Ai cardeal, cardeal!
9 de Dezembro de 1956
(de Dedicácias, Três Sinais editores, 1999)
MÁRIO BEIRÃO
FALA DUM PASTOR
(NA GRANDE FESTA DE BEJA)
(Ao Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Gonçalves Cerejeira)
Aqui, neste solene descampado,
- Plaino de cismas e melancolia -
Tudo se volve a Deus; tudo irradia
Graça, Esperança, Espírito Sagrado:
E, nos sulcos abertos pelo arado,
Germina luz, um sonho, um novo dia;
E, do ocaso na mística elegia,
Brilham as chagas do precioso Lado!
Esta é a planície, que o silêncio embala,
- A grã planície, resplendente de oiro...
Que ela desperte ao som da vossa fala!
- Ó Príncipe da mais augusta igreja,
Por vosso influxo, a um gesto imorredoiro,
O pão do amor multiplicado seja!
(de O Pão da Ceia, edições Ática, 1964)
JORGE DE SENA
De púrpura andas vestido
Que Roma te concedeu
para que humilde defendas
o direito dos humildes
em Terras de Portugal.
Ai cardeal, cardeal!
Mas a mitra que te cobre
não te dói mais que os espinhos
na cabeça do teu Mestre.
Doem-te os cornos dos ricos
das terras de Portugal.
Ai cardeal, cardeal!
9 de Dezembro de 1956
(de Dedicácias, Três Sinais editores, 1999)
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