21.2.08

[Te Deum por uma nova morada #3.]

(atribuido ao) Rei SALOMÃO

[O AMADO]

Como és bela, minha amada,
como és bela!...
São pombas
teus olhos escondidos sob o véu.
Teu cabelo... um rebanho de cabras
ondulando pelas faldas de Galaad.
Teus dentes... um rebanho tosquiado
subindo após o banho,
cada ovelha com seus gêmeos,
nenhuma delas sem cria.
Teus lábios são fita vermelha,
tua fala melodiosa;
metades de romã são teus seios
mergulhados sob o véu.
Teu pescoço é a torre de Davi,
construída com defesas;
dela pendem mil escudos
e armaduras dos heróis.
Teus seios são dois filhotes,
filhos gêmeos de gazela,
pastando entre açucenas.

Antes que sopre a brisa
e as sombras se debandem,
vou ao monte da mirra,
à colina do incenso.

És toda bela, minha amada,
e não tens um só defeito.

Vem do Líbano, noiva minha,
vem do Líbano
e faz tua entrada comigo.
Desce do alto do Amaná,
do cume do Sanir e do Hermon,
esconderijo dos leões,
montes onde rondam as panteras.

Roubaste meu coração,
minha irmã, noiva minha,
roubaste meu coração
com um só dos teus olhares,
uma volta dos colares.
Que belos são teus amores,
minha irmã, noiva minha;
teus amores são melhores do que o vinho,
mais fino que os outros aromas
é o odor dos teus perfumes.
Teus lábios são favo escorrendo,
ó noiva minha,
tens leite e mel sob a língua,
e o perfume de tuas roupas
é como a fragrância do Líbano.

És jardim fechado,
minha irmã, noiva minha,
és jardim fechado,
uma fonte lacrada.
Teus brotos são pomar de romãs
com frutos preciosos:
nardo e açafrão,
canela, cinamomo
e árvores todas de incenso,
mirra e aloés,
e os mais finos perfumes.
A fonte do jardim
é poço de água viva
que jorra, descendo do Líbano!

[A AMADA]

Desperta, vento norte,
aproxima-te, vento sul,
soprai no meu jardim
para espalhar seus perfumes.
Entre o meu amado em seu jardim
e coma de seus frutos saborosos!

(Capitulo 4 do Cântico dos Cânticos, tradução de Ivo Storniolo, in A Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista: edições Paulinas, S. Paulo, Brasil, 1993 – em nota refere-se que “tomadas literalmente, tais descrições traçariam uma imagem grotesca da amada ou do amado; igualmente inverosímil é a sua interpretação alegórica que vê aqui descrições da Terra Santa ou do Templo. Na realidade, estes textos não ‘descrevem’; eles alinham metáforas tomadas de todo o domínio da natureza, física, animal, vegetal, que traduzem, por intermédio de impressões sensoriais, vista e olfacto, os sentimentos de admiração, de alegria e de prazer que a presença do ser amado desperta.”)

20.2.08

[Te Deum por uma nova morada #2.]

ANÓNIMO ÁRABE (do Séc. X)

O CANTO DE UMA BAILARINA


O sol gira na minha cabeça
Sou uma palmeira que arde.
E danço, danço,
à espera da chuva do amor.

A lua gira na minha cabeça.
Sou o silêncio e a noite.
E danço, danço,
embalsamando-me de felicidade
com o perfume do teu corpo.

tu és a chama e eu sou o fumo.
Tu és a água e eu sou o fogo.
Tu és a faca e eu sou o fruto.

Dou-te o ouro da minha pele,
as pérolas dos meus dentes,
os dois rubis dos meus seios,
os diamantes esguios dos meus olhos.
Em troca, apenas te peço
que te lembres de mim.

(de O Jardim das Carícias, tradução de Fernando Ilharco Morgado, Farândola, 1995)

19.2.08

[Te Deum por uma nova morada #1.]

JUAN RAMÓN JIMENEZ

7


Desço ao jardim. São mulheres!
Espera, espera!... Meu amor
toma um braço. Vem! Quem és?
E vejo que é uma flor!

Pela fonte; sim, são elas!
Espera, espera, mulher!
...Prendo a água. São estrelas
que não se podem prender!

(de Antologia Poética, selecção, tradução, prologo e notas de José Bento, Relógio d’Água editores, 1992 – original de Jardines lejanos, 1904)

18.2.08

[Pretendo continuar #9. Morada nova, mas já agora completa-se a novena.]

LUÍS DE CAMÕES

Canto IX
(excertos)

[…]

Nesta frescura tal desembarcavam
já das naus os segundos Argonautas,
onde pela floresta se deixavam
andar as belas deusas, como incautas;
algumas doces cítaras tocavam,
algumas harpas e sonoras flautas,
outras com os arcos de ouro se fingiam
seguir os animais, que não seguiam.

Assim lho aconselharam a mestra experta,
que andassem pelos campos espalhadas,
que vista dos barões a presa incerta
se fizessem primeiro desejadas.
Algumas, que na forma descoberta
do belo corpo estavam confiadas,
posta a artificiosa formosura
nuas lavar-se deixam na água pura.

Mas os fortes mancebos que na praia
punham os pés, de terra cobiçosos,
que não há nenhum deles que não saia,
de acharem caça agreste desejosos,
não cuidam que, sem laço ou redes caia
caça naqueles montes deleitosos
tão suave, doméstica e benigna,
qual ferida lha tinha já Ericina.

Alguns que em espingardas e nas bestas
para ferir os cervos se fiavam,
pelos sombrios matos e florestas
determinadamente se lançavam;
outros, nas sombras que das altas sestas
defendem a verdura, passeavam
ao longo da água, que suave e queda
por alvas pedras corre à praia leda.

Começam de enxergar subitamente
por entre verdes ramos várias cores,
cores de quem a vista julga e sente
que não eram das rosas ou das flores,
mas da lã fina e seda diferente
que mais incita a força dos amores,
de que se vestem as humanas rosas
fazendo-se por arte mais formosas.

Dá Veloso espantado um grande grito:
«Senhores, caça estranha, disse, é esta:
se ainda dura o gentio antigo rito,
a Deusas é sagrada esta floresta.
Mais descobrimos do que humano espírito
desejou nunca; e bem se manifesta
que são grandes as coisas e excelentes,
que o mundo encobre aos homens imprudentes.

Sigamos estas Deusas e vejamos
se fantásticas são se verdadeiras.»
Isto dito, velozes mais que gamos,
se lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo as ninfas vão por entre os ramos,
mas mais industriosas que ligeiras,
pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
se deixam ir dos galgos alcançando.

De uma os cabelos de ouro o vento leva
correndo, e da outra as fraldas delicadas;
acende-se o desejo que se ceva
nas alvas carnes súbito mostradas;
uma de indústria cai e já releva
com mostras mais macias que indignadas,
que sobre ela empecendo também caia
quem a seguiu pela arenosa praia.

Outros por outra parte vão topar
com as Deusas despidas que se lavam;
elas começam súbito a gritar,
como que assalto tal não esperavam.
Umas fingindo menos estimar
a vergonha que a força, se lançavam
nuas por entre o mato, aos olhos dando
o que às mãos cobiçosas vão negando.

[…]

Oh que famintos beijos na floresta!
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
que em risinhos alegres se tornava
o que mais passam na manhã e na sesta,
que Vénus com prazeres inflamava,
melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

[…]

(de Os Lusíadas, 1572 – transcrição conforme a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, selecção, prefacio e notas de Natália Correia, 3ª edição: Antígona / frenesi, 1999 / 1ª edição: Afrodite, 1965)

17.2.08

[Pretendo continuar #8. Morada nova, mas já agora completa-se a novena.]

CESARE PAVESE

MULHERES APAIXONADAS


As raparigas descem para a água ao fim da tarde,
quando o mar se esvai, estendido. No bosque
cada folha estremece quando emergem prudentes
na areia e se sentam nas dunas. A espuma
alonga-se em jogos inquietos na água distante.

As raparigas têm medo das algas escondidas
sob as ondas, que se agarram às pernas e aos ombros:
o que está nu do corpo. Sobem rápidas para as dunas
e chamam-se pelo nome, olhando à volta.
Também as sombras no fundo do mar, no escuro,
são enormes e vêem-se a mexer, incertas,
como atraídas pelos corpos que passam. O bosque
é um refúgio tranquilo ao pôr-do-sol,
mais do que o areal, mas as raparigas morenas
gostam de se à vista de todos, na toalha em desordem.

Estão todas encolhidas, apertando a toalha
contra as pernas, e contemplam o mar plano
como um prado ao fim da tarde. Ousaria alguma delas
deitar-se agora nua na erva dum prado? Do mar
saltariam as algas que afloram os pés,
para agarrar o seu corpo tremulo e envolvê-lo.
No mar há olhos que às vezes reluzem.

Aquela estrangeira desconhecida, que nadava de noite
sozinha e nua no escuro quando muda a lua,
desapareceu uma noite e nunca mais volta.
Era alta e devia ser duma brancura deslumbrante
para que do fundo do mar aqueles olhos a alcançassem.

(de Trabalhar Cansa, tradução de Carlos Leite, edições Cotovia, 1997)