7.6.08

PEDRO TAMEN

VERDES ANOS


Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.

(1963)

(da secção Esparsos de Retábulo das Matérias (1956-2001), Gótica, 2001)




(excerto de Verdes anos, de Paulo Rocha, 1963)

4.6.08

RUI MANUEL AMARAL

História do homem que perdeu a alma num café


Como de costume, José Augusto vai até ao café depois de sair do trabalho. Bebe uma ou duas cervejas. Vá lá, três. Até aqui, tudo bem. Pega no jornal e passa os olhos pelas gordas. Nada de particularmente importante. Depois, levanta-se e, de mãos nos bolsos, volta para casa a assobiar.
Em casa, repara que se esqueceu da alma no café. José Augusto fica aborrecido porque já tinha calçado as pantufas e porque a mulher lhe enche os ouvidos com censuras. A mulher está convencida de que a alma esquecida no café não passa de um pretexto para ele passar a noite fora a beber cerveja e até, quem sabe, a envolver-se noutras coisas.
De qualquer maneira, José Augusto volta ao café. Procura a alma na mesa onde estivera a beber. Mas a mesa e as cadeiras estão vazias. Os empregados dizem que se a alma tivesse ficado ali esquecida, eles teriam reparado. Afinal de contas, não é fácil uma alma passar despercebida. Seja como for, não deixam de lhe notar que nos tempos que correm não se pode confiar em ninguém e que é possível que outro cliente a tenha levado com segundas intenções.
José Augusto resigna-se à sua sorte e, com grande abundância de suspiros e ais, regressa a casa sem a alma. E embora fosse natural e até aconselhável, decide não apresentar queixa às autoridades.
Isto já se passou há bastante tempo. Mas ainda hoje José Augusto sente uma dor muito fina no local onde deveria estar a alma. Em especial durante a época de caça ao faisão. Ou será à perdiz? Não, é ao faisão.

(de Caravana, Angelus Novus, 2008 – Microcosmos)


PAULO KELLERMAN

Lixo


Era uma vez um homem que passava uma parte considerável dos seus dias a mexer no lixo alheio.
Explicava, a quem desejasse saber, que procurava uma alma. Perdera a sua e, por isso, precisava encontrar outra com urgência.
Acrescentava que o local mais óbvio para procurar era entre o lixo dos outros. Pois se a bondade apenas se destaca quando contraposta à maldade, se a virtude apenas o é em relação ao pecado, se a verdade apenas existe enquanto a mentira existir, em que outro local procurar a pureza senão entre a impureza?
Sorria e continuava a revolver o lixo.

(de Miniaturas, edições Colibri / Câmara Municipal de Portimão, 2001)


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

ALMA PERDIDA


Sigefredo botou anúncio classificado, dizendo que perdera sua alma, com promessa de gratificar quem a encontrasse. Não explicou - nem podia - como a tinha perdido.
Apareceram algumas pessoas trazendo pacotes com almas, e nenhuma era a dele. Não se ajustavam a seu corpo, e mesmo que ele quisesse fazer experiência, era evidente que não combinavam com o jeito de Sigefredo. E ele era muito ocupado. Não tinha tempo a perder.
Já se resignara a viver mesmo sem alma, quando uma noite encontrou a desaparecida, à porta de um bar, com aparência de pobreza, mas tranquila.
Seu primeiro impulso foi recolhê-la, mas pensando melhor achou que não valia a pena. A alma de Sigefredo também não manifestou interesse em voltar para ele. Dir-se-ia que aprendera a viver por conta própria, e mesmo naquele estado era independente.
Sigefredo passou por sua alma sem cumprimentá-la, entrou no bar e pediu o drink habitual. Ao sair, viu a alma, a pequena distância, dar alguns passos e saírem dos ombros duas asas, com que ela se alteou, voando para a Zona Norte.

(de Contos Plausíveis, José Olympio editora, 1981)