ERNESTO SAMPAIO
Numa sociedade ordenada segundo a racionalidade dos fins (e na sociedade burguesa esses fins são o lucro), a possibilidade humana dos indivíduos é sempre limitada. Por isso mesmo os surrealistas procuraram descobrir momentos de imprevisão na vida quotidiana, fenómenos que não coubessem no mundo da racionalidade dos fins. A poesia é um bom meio para manter aberta essa possibilidade, mas uma poesia revolucionada. Poeta revolucionário não é o que realiza composições cujo conteúdo e propósito é a proclamação da necessidade da revolução, mas aquele que revoluciona, com meios poéticos, a poesia. Esta não toma a revolução por modelo. É ela que é o modelo da revolução. Possível é, no entanto, que a poesia desapareça antes da espécie humana, e também não é de excluir que ao fim e ao cabo não tenha passado de uma actividade menor e esporádica, a avaliar pela falta de resposta vital com que tem sido acolhida pela imensa maioria do público. Neste aspecto, a época crepuscular que atravessamos é das mais decepcionantes, não encontrando outras máscaras para disfarçar a sua atonia profunda senão as da leviandade e da presunção. Vai longe o tempo, realmente, em que Baudelaire sonhava ser capaz de persuadir os burgueses de que a poesia lhes era tão necessária como o pão. Infatigáveis fornecedores abastecem os burgueses e os outros, não só de pão ensosso como de poesia de pacotilha.
(primeiro parágrafo da apresentação aos poemas de André Breton, Assírio & Alvim, 1994 - documenta poetica)
5.6.04
4.6.04
[SONETOS À SEXTA-FEIRA]
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
EM TODOS OS JARDINS
Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
(de Poesia I, 1944)
MARIA TERESA HORTA
Sobre a ambiguidade
Este esquecer de mim
por bem te querer
este te perder
e envolver nos braços
Este meu dizer e desdizer
de nunca te prender
mas não esquecer que o faço
Este meu delírio
minha febre
este meu medo de saber
Este meu vício
e minha causa
este meu motivo
de não ser
(de Minha Senhora de Mim, 1971)
TERESA RITA LOPES
SONETO DA HORA QUIETA
Gordo pastor desse rebanho imenso
e todavia dócil incapaz de um gesto
de rebeldia o Deus Bojudo da Prudência
suas quietas reses mal vigia
Os galhos novos das árvores não acordam
em seus dentes a fúria de roer
seus cascos não conhecem som de rochas
escarpadas nem a vertigem dos barrancos
As mães lhes deram a beber nas frouxas tetas
o pavor do lobo e o goso do remanso
da erva pouca mas ao pé da boca
Enorme o cajado do pastor
é uma árvore de plácidas folhas quietas
à sombra da qual todo o rebanho dorme
(de Para cantar se calhar)
ANA LUÍSA AMARAL
DISCRETA ARTE
Discretamente. Cultivar a palavra.
Arte de dispor flores por longa mesa,
prazer de dispor quadros por paredes
em critério de escolha pessoal.
Discretamente: aqui uma pequena
haste a lembrar o sol, ali a folha
resolvendo o lugar, o espaço certo
(ligeiro afastamento necessário
para o conjunto articulado em cores).
O quadro mais azul naquele sítio,
o mais cinzento e largo a distrair-se
sobre a nudez de uma parede clara.
Discretamente. E a palavra nascida
de tela (ou terra) resolvida. Agora.
(de Minha Senhora de Quê, 1990)
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
Na tua boca cantou subitamente uma voz
E, ao dizeres o meu nome na rede de um abraço,
o rio que outrora bordava o campo emudeceu
com as suas pedras lisas. Então, foi possível
ouvir o vento soprar nas asas das borboletas
e os lagartos recolherem-se nos veios dos muros
e o sol ferir-se nos espinhos das roseiras.
Sobre a colina quente passou uma nuvem
e uma ave poisou, perplexa, no fio do horizonte -
por um instante, o dia mostrou as suas pálpebras tristes;
e, na brancura cega desse entardecer, a tua mão
escorregou pela inclinação do sol e veio contar
as sombras do um decote.
São assim as mais pequenas histórias do mundo.
(de O Canto do Vento nos Ciprestes, 2001)
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
EM TODOS OS JARDINS
Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
(de Poesia I, 1944)
MARIA TERESA HORTA
Sobre a ambiguidade
Este esquecer de mim
por bem te querer
este te perder
e envolver nos braços
Este meu dizer e desdizer
de nunca te prender
mas não esquecer que o faço
Este meu delírio
minha febre
este meu medo de saber
Este meu vício
e minha causa
este meu motivo
de não ser
(de Minha Senhora de Mim, 1971)
TERESA RITA LOPES
SONETO DA HORA QUIETA
Gordo pastor desse rebanho imenso
e todavia dócil incapaz de um gesto
de rebeldia o Deus Bojudo da Prudência
suas quietas reses mal vigia
Os galhos novos das árvores não acordam
em seus dentes a fúria de roer
seus cascos não conhecem som de rochas
escarpadas nem a vertigem dos barrancos
As mães lhes deram a beber nas frouxas tetas
o pavor do lobo e o goso do remanso
da erva pouca mas ao pé da boca
Enorme o cajado do pastor
é uma árvore de plácidas folhas quietas
à sombra da qual todo o rebanho dorme
(de Para cantar se calhar)
ANA LUÍSA AMARAL
DISCRETA ARTE
Discretamente. Cultivar a palavra.
Arte de dispor flores por longa mesa,
prazer de dispor quadros por paredes
em critério de escolha pessoal.
Discretamente: aqui uma pequena
haste a lembrar o sol, ali a folha
resolvendo o lugar, o espaço certo
(ligeiro afastamento necessário
para o conjunto articulado em cores).
O quadro mais azul naquele sítio,
o mais cinzento e largo a distrair-se
sobre a nudez de uma parede clara.
Discretamente. E a palavra nascida
de tela (ou terra) resolvida. Agora.
(de Minha Senhora de Quê, 1990)
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
Na tua boca cantou subitamente uma voz
E, ao dizeres o meu nome na rede de um abraço,
o rio que outrora bordava o campo emudeceu
com as suas pedras lisas. Então, foi possível
ouvir o vento soprar nas asas das borboletas
e os lagartos recolherem-se nos veios dos muros
e o sol ferir-se nos espinhos das roseiras.
Sobre a colina quente passou uma nuvem
e uma ave poisou, perplexa, no fio do horizonte -
por um instante, o dia mostrou as suas pálpebras tristes;
e, na brancura cega desse entardecer, a tua mão
escorregou pela inclinação do sol e veio contar
as sombras do um decote.
São assim as mais pequenas histórias do mundo.
(de O Canto do Vento nos Ciprestes, 2001)
[efeméride importante]
1945
No início de Junho, atingido pelo tifo [no campo de concentração de] Terezin, está quase moribundo. Vivem-se então os primeiros dias de euforia da libertação. A 4 de Junho, a um estudante checoslovaco que lhe pergunta se ele é parente de um certo poeta de apelido Desnos, reúne forças para responder: "- O poeta francês sou eu."
Morre quatro dias depois.
(da tábua cronológica que antecede Jack O Estripador de Robert Desnos, & etc, 2001 - tradução de Rui Caeiro - trata-se, pelo que pude apurar, da única obra traduzida para português deste escritor surrealista)
1945
No início de Junho, atingido pelo tifo [no campo de concentração de] Terezin, está quase moribundo. Vivem-se então os primeiros dias de euforia da libertação. A 4 de Junho, a um estudante checoslovaco que lhe pergunta se ele é parente de um certo poeta de apelido Desnos, reúne forças para responder: "- O poeta francês sou eu."
Morre quatro dias depois.
(da tábua cronológica que antecede Jack O Estripador de Robert Desnos, & etc, 2001 - tradução de Rui Caeiro - trata-se, pelo que pude apurar, da única obra traduzida para português deste escritor surrealista)
3.6.04
[outros melros XX]
Poema antibucólico
com melros dentro
Aqui, de onde ouço carros a passar
rumo a antigas viagens que já fiz,
de onde pela janela os cedros fitam
o tempo dos meus dias, sentinelas
que não vão deixar-me ir ao paraíso,
cedros com raízes firmes obscuras,
mergulhadas na minha carne, a terra
e o húmus, a mudez que tudo espera,
aqui me saberia de outro modo
se um deus rude chamado acaso visse
a injustiça das mãos que estão vazias
e pudesse tornar-lhe a elas a curva
que se acende e ilumina quando tocam
a flor da pele - vibra na memória
essa lembrança líquida do cheiro
que as madressilvas soltam no verão
e que inunda a surpresa alva do corpo,
como se os meus vinte anos me tornassem
sem os haver sequer tido algum dia,
se imagino os tivesse agora aqui
com a dor e a alegria acumuladas.
A poesia é a farsa luminosa
que de mim mesmo enceno. Vejo o abeto
além subindo ao céu, cheio de ninhos
e de melros que cantam: alimentam-se
da sua seiva e sombras resinosas,
é a casa onde tudo está certo, onde
o desejo não é uma surpresa,
onde nada inquieta a simbiose
dos ramos com os melros, porque nada
precisa de memória, e os automóveis
continuam a rota, e passam sob ele,
e por momentos são apenas carros,
e os cedros, sentinelas que vigiam,
com raízes na terra, a minha carne.
(de magnífico blog de originais de poesia, As Musas Esqueléticas)
Poema antibucólico
com melros dentro
Aqui, de onde ouço carros a passar
rumo a antigas viagens que já fiz,
de onde pela janela os cedros fitam
o tempo dos meus dias, sentinelas
que não vão deixar-me ir ao paraíso,
cedros com raízes firmes obscuras,
mergulhadas na minha carne, a terra
e o húmus, a mudez que tudo espera,
aqui me saberia de outro modo
se um deus rude chamado acaso visse
a injustiça das mãos que estão vazias
e pudesse tornar-lhe a elas a curva
que se acende e ilumina quando tocam
a flor da pele - vibra na memória
essa lembrança líquida do cheiro
que as madressilvas soltam no verão
e que inunda a surpresa alva do corpo,
como se os meus vinte anos me tornassem
sem os haver sequer tido algum dia,
se imagino os tivesse agora aqui
com a dor e a alegria acumuladas.
A poesia é a farsa luminosa
que de mim mesmo enceno. Vejo o abeto
além subindo ao céu, cheio de ninhos
e de melros que cantam: alimentam-se
da sua seiva e sombras resinosas,
é a casa onde tudo está certo, onde
o desejo não é uma surpresa,
onde nada inquieta a simbiose
dos ramos com os melros, porque nada
precisa de memória, e os automóveis
continuam a rota, e passam sob ele,
e por momentos são apenas carros,
e os cedros, sentinelas que vigiam,
com raízes na terra, a minha carne.
(de magnífico blog de originais de poesia, As Musas Esqueléticas)
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ULLA HAHN
Sobre o conceito de tradição
Se, num juízo sobre um poeta, alguém usa a palavra tradição neste país [Alemanha], isso é quase sempre mais uma crítica do que um louvor. E se o conceito vier acompanhado de um "-ismo", então a condenação é inequívoca, e o poema atingido pelo veredicto, tal como o seu produtor, deixam pura e simplesmente de ser dignos de qualquer discussão. Não há lugar para uma relação despreconceituada com uma poesia que assuma de forma aberta e consciente determinados elementos tradicionais. É fácil torcer o nariz diante do cadáver, quando antes se afogou zelosamente em Ismos tudo o que era vivo, porque se mexia, e porque mexia com os outros de forma diferente da desejada. Na melhor das hipóteses, pergunta-se o que há de novo apesar da tradição, e não devido a ela - como se o lugar do velho fosse, se não logo a sucata, pelo menos a vitrina do museu, e como se o que é de hoje tivesse valor apenas pela sua "novidade". As exigências de "novas formas", tal como aparecem hoje nos prefácios a antologias de poesia, lembram a obsessiva procura, por parte das agências de publicidade, de novos slogans para os seus produtos. Está na ordem do dia uma tendência verdadeiramente servil para uma actualidade de fachada (...) Mas existe também, para além de um provincianismo no espaço, um provincianismo no tempo, e T. S. Eliot já chamou a atenção para isso. Quem escreve e emite juízos como se o mundo pertencesse apenas aos vivos, é um provinciano da História. E são sinal de tacanhez, tanto o seguidismo hipócrita como o apego cego ao velho.
(texto citado e traduzido por João Barrento, após a entrevista introdutória de A Sede entre os Limites, Relógio d'Água editores, 1992 - sublinhados meus)
Sobre o conceito de tradição
Se, num juízo sobre um poeta, alguém usa a palavra tradição neste país [Alemanha], isso é quase sempre mais uma crítica do que um louvor. E se o conceito vier acompanhado de um "-ismo", então a condenação é inequívoca, e o poema atingido pelo veredicto, tal como o seu produtor, deixam pura e simplesmente de ser dignos de qualquer discussão. Não há lugar para uma relação despreconceituada com uma poesia que assuma de forma aberta e consciente determinados elementos tradicionais. É fácil torcer o nariz diante do cadáver, quando antes se afogou zelosamente em Ismos tudo o que era vivo, porque se mexia, e porque mexia com os outros de forma diferente da desejada. Na melhor das hipóteses, pergunta-se o que há de novo apesar da tradição, e não devido a ela - como se o lugar do velho fosse, se não logo a sucata, pelo menos a vitrina do museu, e como se o que é de hoje tivesse valor apenas pela sua "novidade". As exigências de "novas formas", tal como aparecem hoje nos prefácios a antologias de poesia, lembram a obsessiva procura, por parte das agências de publicidade, de novos slogans para os seus produtos. Está na ordem do dia uma tendência verdadeiramente servil para uma actualidade de fachada (...) Mas existe também, para além de um provincianismo no espaço, um provincianismo no tempo, e T. S. Eliot já chamou a atenção para isso. Quem escreve e emite juízos como se o mundo pertencesse apenas aos vivos, é um provinciano da História. E são sinal de tacanhez, tanto o seguidismo hipócrita como o apego cego ao velho.
(texto citado e traduzido por João Barrento, após a entrevista introdutória de A Sede entre os Limites, Relógio d'Água editores, 1992 - sublinhados meus)
2.6.04
1.6.04
[outros melros XIX]
ULLA HAHN
Despertar
Um lindo melro abre-me os olhos
de manhã. Canta no verde dos ciprestes
a canção do amor de outrora
Um lindo melro apaga-me os sonhos
pela manhã. Eu sentada no meio
da luz estou mesmo acordada.
(de A Sede entre os Limites, versão de João Barrento, Relógio d'Água editores, 1992)
ULLA HAHN
Despertar
Um lindo melro abre-me os olhos
de manhã. Canta no verde dos ciprestes
a canção do amor de outrora
Um lindo melro apaga-me os sonhos
pela manhã. Eu sentada no meio
da luz estou mesmo acordada.
(de A Sede entre os Limites, versão de João Barrento, Relógio d'Água editores, 1992)
PARA QUÊ MUDAR SE CONTINUA EXCELENTE??
Qualquer pretexto é bom para invocar, aqui, o carácter sublime e soberbo das doudices de Ale & Nebia. Nunca a inutilidade foi tão bem gerida. Água fria e água quente, sem nunca deslizar para equívocas águas mornas, ora pingo a pingo, ora jorrando em aluvião, as torneiras são referência incontornável (helás!!) no panorama da blogolândia nacional e internacional. Até aos 100 milhões!!
(o pretexto, desta vez, foi a oportuna e inquietante mudança de visual perpretada pelo freudiano conclave)
Qualquer pretexto é bom para invocar, aqui, o carácter sublime e soberbo das doudices de Ale & Nebia. Nunca a inutilidade foi tão bem gerida. Água fria e água quente, sem nunca deslizar para equívocas águas mornas, ora pingo a pingo, ora jorrando em aluvião, as torneiras são referência incontornável (helás!!) no panorama da blogolândia nacional e internacional. Até aos 100 milhões!!
(o pretexto, desta vez, foi a oportuna e inquietante mudança de visual perpretada pelo freudiano conclave)
31.5.04
[A propósito de um texto que o meu amigo Carlos trasladou da extinta Quinta Coluna para as Partículas Elementares, lembrei-me que, tal como nas auto-estradas, também na poesia se podem encontrar alguns gatos mortos; já desde o Antigo Egipto, mas ficam só três exemplos recentes na nossa língua]
EUGÉNIO DE ANDRADE
RENTE AO CHÃO
Era azul e tinha os olhos de deus
o meu pequeno persa
- agora rente ao chão onde iria?,
a voz quebrada,
o peso da terra sobre os flancos,
a luz deserta na pupila.
(de Rente ao Dizer, 1992)
JORGE DE SENA
Morreu Dom Fuas, gato meu sete anos,
pomposo, realengo, solene quase inacessível,,
na sua elegância desdenhosa de angorá gigante,
cendrado e branco, de opulento pêlo,
a cauda como pluma de elmo legendário.
Contudo, às suas horas, quando acontecia
que parava em casa mais que por comer
ou visitar-nos condescendentemente como
a Duquesa de Guermantes recebendo Swann,
tinha instantes de ternura toda abraços,
que logo interrompia retornando
aos seus passos de império, ao seu olhar ducal.
Nunca reconheceu nenhuma outra existência
de gato que não ele nesta casa. Os mais
todos se retiravam para que ele passasse
ou para que ele comesse, eles ficando
ao longe contemplando a majestade
que jamais miou para pedir que fosse.
Andava adoentado, encrenca sobre encrenca,
e via-se no corpo e no opulento pêlo,
como no ar da cabeça quanta humilhação
o sofrimento impunha a tanto orgulho imenso.
Por fim, foi internado americanamente,
no hospital do veterinário. E lá,
por notícia telefónica, sozinho, solitário,
como qualquer humano aqui, sabemos que morreu.
A única diferença, e é melhor assim,
em tão terror ambiente de ser-se o animal que morre,
foi não vê-lo mais. Porque ou nós morremos,
como dantes se morria em público,
a família toda, ou toda a corte à volta, ou
é melhor que se não veja no rosto de qualquer
- mesmo ou sobretudo no de um gato que era tão orgulhoso em vida -
não só a marca desse morrer sozinho de que se morre sempre
mesmo que o mundo inteiro faça companhia,
mas de outra solidão tecnocrata, higiénica
que nos suprime transformados em
amável voz profissional de uma secretária solícita.
Dom Fuas, tu morreste. Não direi
que a terra te seja leve, porque é mais que certo
não teres sequer ter tido o privilégio
de dormir para sempre na terra que escavavas
com arte cuidadosa para nela pôres
as fezes de existir que tão bem tapavas,
como gato educado e nobre natural.
Nestes anos de tanta morte à minha volta,
também a tua conta. Nenhum mais
terá teu nome como outros tantos gatos
antes de ti foram já Dom Fuas.
18/12/1977
(de 40 Anos de Servidão, 1978)
VINICIUS DE MORAES
SONÊTO DO GATO MORTO
Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade
De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de electricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.
Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto
Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.
(de O Operário em Construção e outros poemas, selecção e prefácio de Alexandre O'Neill, publicações Dom Quixote, 1986)
EUGÉNIO DE ANDRADE
RENTE AO CHÃO
Era azul e tinha os olhos de deus
o meu pequeno persa
- agora rente ao chão onde iria?,
a voz quebrada,
o peso da terra sobre os flancos,
a luz deserta na pupila.
(de Rente ao Dizer, 1992)
JORGE DE SENA
Morreu Dom Fuas, gato meu sete anos,
pomposo, realengo, solene quase inacessível,,
na sua elegância desdenhosa de angorá gigante,
cendrado e branco, de opulento pêlo,
a cauda como pluma de elmo legendário.
Contudo, às suas horas, quando acontecia
que parava em casa mais que por comer
ou visitar-nos condescendentemente como
a Duquesa de Guermantes recebendo Swann,
tinha instantes de ternura toda abraços,
que logo interrompia retornando
aos seus passos de império, ao seu olhar ducal.
Nunca reconheceu nenhuma outra existência
de gato que não ele nesta casa. Os mais
todos se retiravam para que ele passasse
ou para que ele comesse, eles ficando
ao longe contemplando a majestade
que jamais miou para pedir que fosse.
Andava adoentado, encrenca sobre encrenca,
e via-se no corpo e no opulento pêlo,
como no ar da cabeça quanta humilhação
o sofrimento impunha a tanto orgulho imenso.
Por fim, foi internado americanamente,
no hospital do veterinário. E lá,
por notícia telefónica, sozinho, solitário,
como qualquer humano aqui, sabemos que morreu.
A única diferença, e é melhor assim,
em tão terror ambiente de ser-se o animal que morre,
foi não vê-lo mais. Porque ou nós morremos,
como dantes se morria em público,
a família toda, ou toda a corte à volta, ou
é melhor que se não veja no rosto de qualquer
- mesmo ou sobretudo no de um gato que era tão orgulhoso em vida -
não só a marca desse morrer sozinho de que se morre sempre
mesmo que o mundo inteiro faça companhia,
mas de outra solidão tecnocrata, higiénica
que nos suprime transformados em
amável voz profissional de uma secretária solícita.
Dom Fuas, tu morreste. Não direi
que a terra te seja leve, porque é mais que certo
não teres sequer ter tido o privilégio
de dormir para sempre na terra que escavavas
com arte cuidadosa para nela pôres
as fezes de existir que tão bem tapavas,
como gato educado e nobre natural.
Nestes anos de tanta morte à minha volta,
também a tua conta. Nenhum mais
terá teu nome como outros tantos gatos
antes de ti foram já Dom Fuas.
18/12/1977
(de 40 Anos de Servidão, 1978)
VINICIUS DE MORAES
SONÊTO DO GATO MORTO
Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade
De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de electricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.
Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto
Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.
(de O Operário em Construção e outros poemas, selecção e prefácio de Alexandre O'Neill, publicações Dom Quixote, 1986)
30.5.04
...e renovai a terra.
[EL GRECO (1541-1614), La Pentecostés, datado de c. 1605 - a figura em baixo, em primeiro plano é um auto-retrato do artista]
ALEJANDRA PIZARNIK
7
Salta com a camisa em chamas
de estrela em estrela,
de sombra em sombra.
Morre de morte longínqua
a que ama ao vento.
(tradução de Alberto Augusto Miranda, in Antologia Poética, O Correio dos Navios, 2002)
7
Salta com a camisa em chamas
de estrela em estrela,
de sombra em sombra.
Morre de morte longínqua
a que ama ao vento.
(tradução de Alberto Augusto Miranda, in Antologia Poética, O Correio dos Navios, 2002)
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