[SONETOS À SEXTA-FEIRA]
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
EM TODOS OS JARDINS
Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
(de Poesia I, 1944)
MARIA TERESA HORTA
Sobre a ambiguidade
Este esquecer de mim
por bem te querer
este te perder
e envolver nos braços
Este meu dizer e desdizer
de nunca te prender
mas não esquecer que o faço
Este meu delírio
minha febre
este meu medo de saber
Este meu vício
e minha causa
este meu motivo
de não ser
(de Minha Senhora de Mim, 1971)
TERESA RITA LOPES
SONETO DA HORA QUIETA
Gordo pastor desse rebanho imenso
e todavia dócil incapaz de um gesto
de rebeldia o Deus Bojudo da Prudência
suas quietas reses mal vigia
Os galhos novos das árvores não acordam
em seus dentes a fúria de roer
seus cascos não conhecem som de rochas
escarpadas nem a vertigem dos barrancos
As mães lhes deram a beber nas frouxas tetas
o pavor do lobo e o goso do remanso
da erva pouca mas ao pé da boca
Enorme o cajado do pastor
é uma árvore de plácidas folhas quietas
à sombra da qual todo o rebanho dorme
(de Para cantar se calhar)
ANA LUÍSA AMARAL
DISCRETA ARTE
Discretamente. Cultivar a palavra.
Arte de dispor flores por longa mesa,
prazer de dispor quadros por paredes
em critério de escolha pessoal.
Discretamente: aqui uma pequena
haste a lembrar o sol, ali a folha
resolvendo o lugar, o espaço certo
(ligeiro afastamento necessário
para o conjunto articulado em cores).
O quadro mais azul naquele sítio,
o mais cinzento e largo a distrair-se
sobre a nudez de uma parede clara.
Discretamente. E a palavra nascida
de tela (ou terra) resolvida. Agora.
(de Minha Senhora de Quê, 1990)
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
Na tua boca cantou subitamente uma voz
E, ao dizeres o meu nome na rede de um abraço,
o rio que outrora bordava o campo emudeceu
com as suas pedras lisas. Então, foi possível
ouvir o vento soprar nas asas das borboletas
e os lagartos recolherem-se nos veios dos muros
e o sol ferir-se nos espinhos das roseiras.
Sobre a colina quente passou uma nuvem
e uma ave poisou, perplexa, no fio do horizonte -
por um instante, o dia mostrou as suas pálpebras tristes;
e, na brancura cega desse entardecer, a tua mão
escorregou pela inclinação do sol e veio contar
as sombras do um decote.
São assim as mais pequenas histórias do mundo.
(de O Canto do Vento nos Ciprestes, 2001)
4.6.04
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