3.6.04

[outros melros XX]

Poema antibucólico
com melros dentro


Aqui, de onde ouço carros a passar
rumo a antigas viagens que já fiz,
de onde pela janela os cedros fitam
o tempo dos meus dias, sentinelas
que não vão deixar-me ir ao paraíso,
cedros com raízes firmes obscuras,
mergulhadas na minha carne, a terra
e o húmus, a mudez que tudo espera,
aqui me saberia de outro modo
se um deus rude chamado acaso visse
a injustiça das mãos que estão vazias
e pudesse tornar-lhe a elas a curva
que se acende e ilumina quando tocam
a flor da pele - vibra na memória
essa lembrança líquida do cheiro
que as madressilvas soltam no verão
e que inunda a surpresa alva do corpo,
como se os meus vinte anos me tornassem
sem os haver sequer tido algum dia,
se imagino os tivesse agora aqui
com a dor e a alegria acumuladas.

A poesia é a farsa luminosa
que de mim mesmo enceno. Vejo o abeto
além subindo ao céu, cheio de ninhos
e de melros que cantam: alimentam-se
da sua seiva e sombras resinosas,
é a casa onde tudo está certo, onde
o desejo não é uma surpresa,
onde nada inquieta a simbiose
dos ramos com os melros, porque nada
precisa de memória, e os automóveis
continuam a rota, e passam sob ele,
e por momentos são apenas carros,
e os cedros, sentinelas que vigiam,
com raízes na terra, a minha carne.

(de magnífico blog de originais de poesia, As Musas Esqueléticas)

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