[A propósito de um texto que o meu amigo Carlos trasladou da extinta Quinta Coluna para as Partículas Elementares, lembrei-me que, tal como nas auto-estradas, também na poesia se podem encontrar alguns gatos mortos; já desde o Antigo Egipto, mas ficam só três exemplos recentes na nossa língua]
EUGÉNIO DE ANDRADE
RENTE AO CHÃO
Era azul e tinha os olhos de deus
o meu pequeno persa
- agora rente ao chão onde iria?,
a voz quebrada,
o peso da terra sobre os flancos,
a luz deserta na pupila.
(de Rente ao Dizer, 1992)
JORGE DE SENA
Morreu Dom Fuas, gato meu sete anos,
pomposo, realengo, solene quase inacessível,,
na sua elegância desdenhosa de angorá gigante,
cendrado e branco, de opulento pêlo,
a cauda como pluma de elmo legendário.
Contudo, às suas horas, quando acontecia
que parava em casa mais que por comer
ou visitar-nos condescendentemente como
a Duquesa de Guermantes recebendo Swann,
tinha instantes de ternura toda abraços,
que logo interrompia retornando
aos seus passos de império, ao seu olhar ducal.
Nunca reconheceu nenhuma outra existência
de gato que não ele nesta casa. Os mais
todos se retiravam para que ele passasse
ou para que ele comesse, eles ficando
ao longe contemplando a majestade
que jamais miou para pedir que fosse.
Andava adoentado, encrenca sobre encrenca,
e via-se no corpo e no opulento pêlo,
como no ar da cabeça quanta humilhação
o sofrimento impunha a tanto orgulho imenso.
Por fim, foi internado americanamente,
no hospital do veterinário. E lá,
por notícia telefónica, sozinho, solitário,
como qualquer humano aqui, sabemos que morreu.
A única diferença, e é melhor assim,
em tão terror ambiente de ser-se o animal que morre,
foi não vê-lo mais. Porque ou nós morremos,
como dantes se morria em público,
a família toda, ou toda a corte à volta, ou
é melhor que se não veja no rosto de qualquer
- mesmo ou sobretudo no de um gato que era tão orgulhoso em vida -
não só a marca desse morrer sozinho de que se morre sempre
mesmo que o mundo inteiro faça companhia,
mas de outra solidão tecnocrata, higiénica
que nos suprime transformados em
amável voz profissional de uma secretária solícita.
Dom Fuas, tu morreste. Não direi
que a terra te seja leve, porque é mais que certo
não teres sequer ter tido o privilégio
de dormir para sempre na terra que escavavas
com arte cuidadosa para nela pôres
as fezes de existir que tão bem tapavas,
como gato educado e nobre natural.
Nestes anos de tanta morte à minha volta,
também a tua conta. Nenhum mais
terá teu nome como outros tantos gatos
antes de ti foram já Dom Fuas.
18/12/1977
(de 40 Anos de Servidão, 1978)
VINICIUS DE MORAES
SONÊTO DO GATO MORTO
Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade
De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de electricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.
Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto
Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.
(de O Operário em Construção e outros poemas, selecção e prefácio de Alexandre O'Neill, publicações Dom Quixote, 1986)
31.5.04
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