5.6.04

ERNESTO SAMPAIO

Numa sociedade ordenada segundo a racionalidade dos fins (e na sociedade burguesa esses fins são o lucro), a possibilidade humana dos indivíduos é sempre limitada. Por isso mesmo os surrealistas procuraram descobrir momentos de imprevisão na vida quotidiana, fenómenos que não coubessem no mundo da racionalidade dos fins. A poesia é um bom meio para manter aberta essa possibilidade, mas uma poesia revolucionada. Poeta revolucionário não é o que realiza composições cujo conteúdo e propósito é a proclamação da necessidade da revolução, mas aquele que revoluciona, com meios poéticos, a poesia. Esta não toma a revolução por modelo. É ela que é o modelo da revolução. Possível é, no entanto, que a poesia desapareça antes da espécie humana, e também não é de excluir que ao fim e ao cabo não tenha passado de uma actividade menor e esporádica, a avaliar pela falta de resposta vital com que tem sido acolhida pela imensa maioria do público. Neste aspecto, a época crepuscular que atravessamos é das mais decepcionantes, não encontrando outras máscaras para disfarçar a sua atonia profunda senão as da leviandade e da presunção. Vai longe o tempo, realmente, em que Baudelaire sonhava ser capaz de persuadir os burgueses de que a poesia lhes era tão necessária como o pão. Infatigáveis fornecedores abastecem os burgueses e os outros, não só de pão ensosso como de poesia de pacotilha.

(primeiro parágrafo da apresentação aos poemas de André Breton, Assírio & Alvim, 1994 - documenta poetica)

Sem comentários: