12.9.09

JOEL HENRIQUES

PASSOS


Os passos despertam o ser desconhecido
no fim da procura.

Se alguém me levasse
sobre a terra sem descanso,
talvez pouco descobrisse.
A viagem continuaria insaciável.

Repito os passos sem limite
para que a linguagem me pertença

Só assim encontrarei a claridade
no instante vivo da aurora.

(de A Claridade, editora Casa do Sul, 2008)

11.9.09

Um poema a propósito e com a devida temperatura seniana:

Trasladação dos Ossos de Jorge de Sena,

inédito de Amadeu Baptista,

a ler no Porosidade etérea

[Em face dos últimos acontecimentos]

JORGE DE SENA

[JORGE DE SENA] DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

(de Metamorfoses, seguidas de Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, 1963 - a alteração do título é da minha responsabilidade)


MÉCIA DE SENA

(excerto de) Alguns «Flashes»

(...) No dia em que o Jorge chegava com o ordenado eu fazia montinhos do dinheiro para os pagamentos mais urgentes, contava e recontava, para concluir sempre que. nem sequer chegava para pagar tudo, quanto mais para sobreviver trinta dias!
A primeira vez que tive com que viver até o mês acabar foi em Junho de 1978. Essa tranquilidade minha a pagaste com a tua vida. Preferia passar fome.

(in As Escadas não têm Degraus 1, livros Cotovia, Janeiro de 1989)

[a imagem foi reproduzida a partir da capa de Sobre Cinema, concebida graficamente por Luís Miguel Castro, numa edição da Cinemateca Portuguesa de 1988]

10.9.09

RUY CINATTI

A MARGEM DO PÂNTANO


Para Jorge de Sena

Tudo me dói como se fora medo
ou ânsia de ficar aquém da morte
brincando na ilusão de estar vivendo
medos perdidos, pélagos selados.
Sonhos não chegam para tamanha sorte
ou chegam, mas são fúria lá no centro
de um mundo onde não vivo, iluminado
por mão intemerata já sem norte.
Acaso quebro lages, desço fundo,
laços desfaço de invisível corda.
Ao centro que me foge e que não quero
logo deslizo como quem se avilta
no lixo temporal muro fechado.
Enquanto o dia não chega a febre aumenta.
Vozes insistem pela madrugada.
Lanço de mim o grito inesperado:
eu vivo, sou, e sonho, ou desespero!
realidade és medo, a dor é nada!

(de Conversa de Rotina, 1973)

9.9.09

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

IX.9
FILIORUMQUE


Eles cantam e tocam nas suas violas
Eles rasgam os seus corações
Não os seus vestidos
Como disse o Senhor ao seu Profeta
Que fizessem e o lembram
Aos cristãos na Quarta de Cinzas...

Nós seguimos inanes caranguejolas
Disfarçando muito bem os tropeções
Com o falso cismar dos distraídos
E fumaça de falsas mofetas
E falso lembrar de se quebrarem
P'ra sempre as urnas doutras cinzas
Pó dos tempos a esconder-me o tempo.

Eles cantam e tocam as suas violas...
Rasgai os corações e não vossos vestidos
Disse o Profeta do Senhor. . .
Eles não tocam para os já vencidos
Eles não cantam para os sem-amor.

Tanto quanto os há na terra, deuses é que eles são…
Tocam e cantam e assim vão criando
Mundos que não são nada ilusões
Mundos em que o som outros sons cria
Em que essa união constante
É a ponte única que liga
Aqui e o lugar distante
Onde pode ser que ainda exista

O que me fez escrever sem que razão
Aparente p'ra fazê-lo subsista...
Bem sei que não são versos para ouvidos finos
Bem sei; mas eu, sinceramente, meus meninos,
Não creio que o sejam — finos os ouvidos, quero eu dizer… –
Pois se o fossem
Era p'ra eles que serviam estes versos. . .

8/9.2.67

(de Enéadas – 9 Novenas, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989 – Biblioteca de Autores Portugueses)

8.9.09

HERBERTO HELDER

TEORIA SENTADA



I

Um lento prazer esgota a minha voz. Quem
canta empobrece nas frementes cidades
revividas. Empobrece com a alegria
por onde se conduz, e então é doce
e mortal. Um lento
prazer de escrever, imitando
cantar. E vendo a voz disposta
nos seus sinais, revelada entre a humidade
dos corpos e a sua
glória secular. Uma dor esgota
a idade, com cravos, da minha voz.
E eu escrevo como quem imita uma vida e a vida
de uma inconcebível
magnitude. Ou somente de uma
voz. Um lento desprazer, uma
solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima,
como um silêncio, o antigo
de minha voz.

O que digo é rápido, e somente o modo
de sofrer
é lento e lento. É rapidamente fácil e mortal
o que agora digo, e só
as mãos lentamente levantam o álcool
da canção e a formosura
de um tempo absorvido. Digo tudo o que é
mais fácil da vida, e o fácil
é duro e batido pela paciência.
Porque a terra dorme e acorda de uma
para outra estação.

Porque vi crianças alojadas nos meus
melhores instantes, e vi
pedaços celestes fulminados na minha
paixão, e vi
textos de sangue marcados desordenadamente
pelo ouro. Porque vi e vi, na saída
de um dia para o começo
da primeira noite, e no despedaçar da noite.
E porque me levantei para sorrir
e ser cândido. E porque então
estremeci com a rapidez das palavras e a quente
morosidade
da vida. Eu disse o que era fácil
para dizer e eu tão
dificilmente havia reconhecido. Porque eu disse:
um prazer, um pesado prazer de cantar
a vida, consome a única voz
de uma vida mais sombria e mais funda.
E eu mudo sobre este campo parado
de cravos, quando a lua
rebenta, quando
sóis e raios crescem para todos os lados do seu
fulminante país.

Alguém se debruça para gritar e ouvir em meus
vales
o eco, e sentir a alegria de sua expressa
existência. Alguém chama por si próprio,
sobre mim, em seus terríficos confins.
E eu tremo de gosto, ardo, consumo
o pensamento, ressuscito
dons esgotados. Escrevo à minha volta,
esquecido de que é fácil, crendo
só no antigo gesto que alarga a solidão contra
a solidão do amor.
Escrevo o que bate em mim — a voz
fria, a alarmada malícia
das vozes, os ecos de alegria e a escuridão
das gargantas lascadas. Para os lados,
como se abrisse, com a doçura de um espelho
infiltrado na sombra. Fiel
como um punhal voltado para o amor
total de quem o empunha.

Alguém se procura dentro de meu ardor
escuro, e reconhece as noites
espantosas do seu próprio silêncio. E eu falo,
e vejo as mudanças e o imóvel
sentido do meu amor, e vejo
minha boca aberta contra minha própria boca
num amargo fundo de vozes
universais.

Alguém procura onde eu estou só, e encontra
o campo desbaratado
e branco da sua
solidão.

(de Lugar, 1962, in Ofício Cantante – poesia completa, Assírio & Alvim, 2009 – documenta poetica)

7.9.09


ANTÓNIO CUNHA RIBEIRO

Nasceu em 1957 em Angra do Heroísmo. No seu primeiro livro, escrito aos 13 anos, Emanuel Félix interpela-o com estas palavras:
«Há gente tranquila. Há gente sossegada. Há gente tranquilamente sossegada. E um rapaz com um búzio pode quebrar a espessura da sua noite ou espantar o medo da sua vigília.
Ora acontece que tu, aos treze anos, és o rapaz com um búzio. E o búzio a figuração da poesia. Forma, significado, melodia. A receita do poema.»

Foi jornalista na Reuters e colaborou nos jornais Le Monde, Le Figaro e Daily Telegraph, além de outros órgãos de comunicação nacionais e regionais dos Açores. Foi também funcionário político da OLP (Organização para a Libertação da Palestina).
Além dos aqui referidos, publicou ainda, em 1985, Raiz Renovada, em edição da Câmara Municipal do Montijo. De entre os seus inéditos, encontram-se traduções de poemas de autores árabes contemporâneos.
Morreu em 1994.



PREFÁCIO

O poeta consome a dor
da desigualdade
nas palavras

O poeta desperta os outros
da fome calada

O poeta sente pelos outros
por eles vive
e fala


NOITE CERRADA

Ainda é noite
cerrada.

Agitam-se os braços
em vagarosos gestos de saudade
do dia que nunca virá.

Fantasmas espreitam
por entre as árvores
impedindo a nossa evasão.

De longe chegam gritos abafados
pelo rumorejar
da vegetação.

Uma única esperança nos resta,
camarada:
que o fogo nos ilumine
para que não nos percamos
na floresta.

E um desejo:
de que o dia claro
seja em breve
uma realidade.

(de Rapaz com um Búzio, Edição do Autor, 1971 – Colecção Gávea/Glacial)


Ritual

Provavelmente nunca iremos ver-nos, tocar a face um do outro, fecundar os lençóis brancos de uma cama. Mas se puder prefiro encontrar-te à saída cansada da usina, na tasca ou na rua. Aí melhor enfrentaremos o Sol e o Sal.
O sonho é o meu lugar e escrevo para que existas. Pelo caminho da escrita sofro longos orgasmos, e sei que tu também, qualquer que seja o teu rosto e o teu sonho. Qualquer que seja o teu caminho.
Por vezes cansa-me o halo dos mortais. É a distância que nos faz irmãos. Da mesma partida ao retorno, a mesma viagem de que nada fica. No fim foi só a vertigem, e só a vertigem nos acompanha.


Canto animal

Deixem o poema ser homem
e poisar na carne do homem

Deixem o poema ter saliva e ter medo
e sangue e braços que abracem
longamente em cada gesto cada gesto
o gesto do animal cio

até à exaustão que branca se derrama
e no branco se tinge de vida

o sal o musgo a fímbria dos corpos
que um no outro se completam


Bilhete para Tawfik az’Zayyad

Todas as celas fechadas
todos os pulsos sangrando urgência

Talvez amanhã
rasgaremos a pedra da noite
Talvez

(de Esta palavra escrita, Signo, 1985 - colecção Palco no Vento)


O SANGUE

Escrevo estes versos de grãos de terra na mão: eis a prova.
Tenho a certeza dos passos. Todos temos. Só no mais diferimos.
Era uma longa subida. Era a certeza
da nossa própria emigração. A mais bela,
a mais funda companhia. A perfeita igualdade do transporte
foi amassada em três quedas. Um braço, outro braço, um corpo
e a longa subida.

E agora: a tua pele
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.

Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos
e no côncavo das mãos o sol nascia.

(inédito, gentilmente cedido por Luísa Ribeiro, irmã do Autor)
LUÍSA RIBEIRO

A memória é a gaveta com as palavras eternizadas.

O incêndio alastra-se nas veias
seduz o esmagado sol das manhãs
e purifica as ideias.
Gosto dele
como do veludo e da cor dos pêssegos.
Ele fecha a porta
e desce as escadas da rua
com a lentidão sorridente da volúpia.
Fala-me num tom severo que me inutiliza…

Uma noite contou-me os poemas da mãe
e prendeu-me aí.

(À beira-mar em recanto de festa, gostei de te escutar)


(de Fogo Branco, Direcção Regional dos Assuntos Culturais / Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1986 – Colecção Gaivota)

6.9.09

GRAÇA PIRES


Todos me falam de ti
com palavras ambíguas.
Fui, eu sei, uma suspeita
de luz em teu olhar.
Virados a levante,
os meus cabelos
eram labaredas em teus dedos.
Na hora do combate
me nomeavas,
como se rezasses.
Pinto-a na minha imaginação
como a desejo, tanto na beleza
como na nobreza
, disseste.
E vejo a minha expressão
na cor dos teus olhos.
Tão cúmplice, eu,
de tamanho assombro.

(de Uma extensa mancha de sonhos, editora Labirinto, 2008)