10.7.09

RUI KNOPFLI

APRENDIZ NA OFICINA DA POESIA

Não rimes.
Ou rima, se quiseres,
mas não violentes
a palavra.
Não busques ansioso,
qual amante inexperiente,
a palavra.

Espera antes
a sua vinda.

Música e rima
são acessórios dispensáveis:
O poema é outra coisa.

Deixa, pois
que as palavras acordem
na matriz
e caiam maduras.
Áridas ou frias,
secas e imperturbáveis,
orvalhadas, humildes,
estropiadas até,
que sejam precisas,
prenhes de significado.

Espera as palavras.
Elas viajam misteriosas,
desconhecidas ainda,
elas germinam
em ti.

Caem. Juntam-se.
Doloridas, feias
sob o visco placentário,
deselegantes por vezes,
elas procuram-se
e organizam-se.

Juntas transcendem-se,
há algo de íntimo,
coeso e secreto
nelas.

O poema está aí.

(de Reino Submarino, 1962)

9.7.09

OLGA SAVARY

MERGULHO



Com certeza não foi aqui
onde a pedra no fundo d'água
era apenas essa coisa: medo.

Água
(flor carregada de perguntas,
nuvem onde me esgarço, líquida),
a idade da pedra se soubesses
não passearias assim tua tranquilidade.
Água,
responderias talvez com alguma praia
mesmo que as houvesse submersas,
que retivessem um corpo magiciado
– não mais corpo mas só algas,
algas se desfazendo em água.

Eu não saberia dizê-lo certo
mas com certeza não foi aqui.
E o não saber a perda onde encontrar
e o quanto é grande, a água que me chama
me inventa em secreto mar.

RIO, NOV. 1961


(de Espelho Provisório, livraria José Olympio editora, 1970)

8.7.09

BERNARDO PINTO DE ALMEIDA

o mar em chamas



todos os livros que leio me falam da tua morte
mas não se pode acreditar em tudo o que se lê
e sabendo embora que a tristeza não existe
não posso deixar de me sentar com a cara apoiada numa das mãos

a vida é uma doença de que alguns se curaram
passo os dias sentado num café à distância
e entre mim e mim existe já uma intimidade insuportável
(como dar de novo ouvidos aos meus mestres de outrora?)

fui dos que julgaram ter nascido para tornar grande o mundo
mas atrasei-me de propósito num quarto cheio de homens
– procuro perceber que tempo é que me cabe –

uma noite fui visto a lançar fogo ao mar


(de A Substância da Saudade (ou os últimos poemas de Américo Radar), in e outros poemas, Quetzal editores, 2002 – este poema pode ser ouvido, na voz do Autor, no cd O Vento a Escrever, Sombra do Amor edições, 2007)

7.7.09

JORGE DE AMORIM

AS MÃOS


Margens derivam. Lisura
das mãos, não rígidas. Rectas.
Nem açude: a que submetas,
torrencial, a ternura.
Murmulho. Espuma: fervente
caudal! Paralelamente,
ternas, derivam. E as horas
nas palmas brancas esquivo.
Ah, mãos? Nunca agarradoras
do coração fugitivo.


(de A Beleza e as Lágrimas, edição do Autor, 1957)

6.7.09

[para uma antologia de bicicletas – 16 e 17]

KATIE MELUA





HUGO MILHANAS MACHADO

KATIE MELUA


Nove milhões de bicicletas em Pequim
muitas muitas bicicletas em Pequim e bom
são afinal bicicletas ou todas as bicicletas
e bem vendo aqui triste e aqui assim
tão poucas bicicletas aquelas bicicletas
nove milhões de bicicletas em Pequim
e aqui arrumadas ao pé da letra aqui
tão poucas bicicletas

se Katie Melua oh Katie Melua tantas
bicicletas são nove milhões de bicicletas
nove nove milhões de bicicletas em Pequim.

(de Clave do Mundo, Sombra do Amor edições, 2007)