25.10.14

ALBANO MARTINS


Raul de Carvalho, o poeta português de que hoje aqui nos ocupamos, viveu, pode dizer-se, em risco permanente. Risco físico: uma aparente robustez disfarçava a doença - as doenças, várias, cedo manifestadas - que progressiva e inexoravelmente lhe corroeu o corpo e a que acabou por sucumbir, em 3 de Setembro de 1984, num hospital do Porto. Risco existencial: «filho de sapateiro bêbado», como de si um dia deixou escrito, do pai herdou a propensão, que nele era evidente, para «tudo discutir», o temperamento arrebatado e o «orgulho» que o manteve em rigoroso e diário conflito consigo e com os outros.
Do poeta diremos que ele é o retrato do homem, e nesta afirmação a melhor e mais justa homenagem que podemos prestar-lhe.


(excerto de «Raul de Carvalho e a Poesia da Autenticidade», in As Letras e as Tintas, edições Quasi, 2006)


PAULO DA COSTA DOMINGOS


Vivi, pois, durante uma época, ainda que muito brevemente, numa casa cujas janelas me inclinavam para as traseiras de um poeta: Raul de Carvalho. Cantava; ouvia-se-lo cantarolar sobre quintais e saguões, à luz de ouro no Outono lisboeta. E ia pondo a sua roupa lavada no estendal, na alegria doce de quem vive, não sozinho: na companhia de versos em louvor dos nadas do dia-a-dia. E o seu vidro saía cortado à medida da sua casa. Algo de que nunca eu me cansei, repetindo, repetindo iguais gestos, decerto, na minha própria construção. Ler, não chega; há que ver e ouvir pela abertura do coração, comovidamente. 


(excerto de Narrativa, Frenesi, 2009)