9.12.12

[efeméride]


JORGE DE SENA


Hei-de ser tudo o que eles querem:
a raiva é toda de eu não ser um espelho
em que mirem com gosto os próprios cornos,
as caudas com lacinhos, e os bigodes
de chibos capripédicos.
Não sou sequer imagem.
Mas voz eu sou
que como agulha ou lança ou faca ou espada
mesmo que não dissesse da miséria
de lodo e trampa em que se espojam vis
só porque existe é como uma denúncia.

Hei-de ser tudo, não o sendo. Um dia
— podres na terra ou nos caixões de chumbo
estes zelosos treponemas lusos —
uma outra gente, e limpa, julgará
desta vergonha inominável que é
ter de existir num tempo de canalhas
de umbigo preso à podridão de impérios
e à lei de mendigar favor dos grandes.
9/12/1972
  
Viajemos.
Oh não para comer comidas raras.
ou para experimentar corpos exóticos.
Mas para não ficar num lugar só
e na corrida não ter tempo nunca
de descobrir o que sabe: é porca
a mesma humanidade em toda a parte.
Olhemos a paisagem, monumentos,
notemos como há gente muito bela,
passemos onde espíritos sofreram
(sem visitá-los onde dormem pó)
— e tomemos depressa avião ou barco,
ou carro ou expresso, antes que alguém comece
a abrir a boca e mostre a dentadura.
9/12/1972

(in Visão Perpétua, edições 70, 1989)

27.11.12

não sou nem nunca serei um poeta a sério. publiquei dois livros, colaborei em revistas e antologias, estive neste ou naquele evento. mas tudo muito superficial, sem consistência. também não faço parte de grupos tertúlias ou movimentos afins. as relações literárias q tenho tido são pontuais e inconsequentes. mesmo aqueles do "meio" a quem posso chamar Amigos, são gente com quem raramente falo ou contacto de qualquer outra forma. basicamente, sou um leitor solitário, q de vez em quando descarrega palavras com a ânsia de serem lidas. o facebook nesse aspecto é muito útil, pois cria a ilusão de se ser lido. no fim, tudo excessivamente efémero.

19.11.12

PARMÉNIDES


Pois bem, eu vou falar, e tu escuta e retém as minhas palavras,
que te ensinarão as duas únicas vias do conhecimento que é possível conceber.
A primeira é o que é e que não pode deixar de ser.
É a via da persuasão, companheira da Verdade.
A segunda é o que não é e como é forçoso que não exista.
Digo-te: esta via é uma senda que não se pode percorrer.
Pois não poderás conhecer o que não é
nem exprimi-lo por palavras.

... Pois pensar é o mesmo que existir.

(in Antologia da Poesia Grega Clássica, tradução e notas complementares de Albano Martins, Portugália editora, 2010)

16.11.12


JULIO CORTÁZAR

Sempre que chega o tempo fresco, ou seja, a meio do Outono, passam me pela cabeça ideias de tipo echêntríco e esótico, como por ezenplo tornar me uma andorinha para poder voar para os paízes onde está mais calor, ou de ser formiga, para poder enfiar me bem dentro de uma cova e comer os alimentos armazenados durante o Verão ou de ser uma bívora como as do soológicO, onde as têm bem guardadas numa jaula de vidro aquecida para que não fiquem duras de frio, que é o que acontece aos pobres seres humanos, que não podem comprar roupa de tão cara questá, nem podem aquecer se por causa da falta de querosene, carvão, lenha, petróleo, e essencialmente por causa da falta de massa, porque quando alguém anda cheio dela pode dar se ao luxo de entrar em qualquer tasca para beber uma boa grappa e é ver enquanto aquece, ainda que convenha não abusar, porque do abuso vem o víssio e do víssio a degeneração tanto do corpo como das taras moral de cada um, e quando alguém se vem abaixo pela suspensa e fatal falta de condupta moral em todo o sentido, já ninguém nem ninguéns o livra de acabar no mais espantoso caixote de lixo do desprastíjio humano, e nunca lhe darão uma mão se entenderá para o resgatar da lama inmunda na qual se rebolve, nem mais nem menos do que se fosse um condoR que quando jovem soube correr e voar pelo cume das altas montanias, mas que ao envelhecer caiu prabaixo como um bombardeiro em voo picado ao qual falha o motor moral. Oxalá o que estou a escrever sirva pralgum tomar atenção ao seu comportamento e para não sarrepender quando for demasiado tarde e já tudo tenha ido pró badano por sua própria culpa!
CÉSAR BRUTO, O que eu gostaria de ser se não fosse o que sou (capítulo Cão de São Bernardo).

(in O Jogo do Mundo (Rayuela), tradução de Alberto Simões, Cavalo de Ferro, 2008)

13.8.12

[outros melros LXVI]

MILAN KUNDERA


No decorrer dos últimos duzentos anos o melro abandonou as florestas para se transformar num pássaro das cidades. Primeiro na Grã-Bretanha, logo no final do século XVIII, umas dezenas de anos mais tarde em Paris e no Ruhr. Ao longo do século XIX, conquistou, uma após outra, as cidades da Europa. Instalou-se em Viena e em Praga por volta de 1900, continuou para leste, chegou a Budapeste, Belgrado e Istambul.
No que diz respeito ao planeta, esta invasão do melro no mundo do homem é incontestavelmente mais importante do que a invasão da América do Sul pelos Espanhóis ou do que o regresso dos Judeus à Palestina. A modificação das relações entre as diversas espécies da criação (peixes, pássaros, homens, vegetais) é uma modificação de ordem mais elevada do que as mudanças nas relações entre os diferentes grupos de uma mesma espécie. Que a Boémia seja habitada pelos Celtas ou pelos Eslavos, a Bressarábia conquistada pelos Romenos ou pelos Russos, à Terra tanto lhe faz. Mas que o melro traia a sua natureza original para seguir o homem no seu universo artificial e contranatura é um facto que já altera alguma coisa quanto à organização do planeta.
No entanto, ninguém ousa interpretar os dois últimos séculos como a história da invasão das cidades do homem pelo melro. Somos todos prisioneiros de uma concepção pré-estabelecida do que é importante e do que não o é, fixamos sobre o que é importante olhares ansiosos, enquanto furtivamente, nas nossas costas, o insignificante conduz a sua guerrilha, que acabará por alterar sub-repticiamente o mundo e a atacar-nos de surpresa.


(excerto de O Livro do Riso e do Esquecimento, tradução de Tereza Coelho, 3ª edição: publicações Dom Quixote, 1986)

27.7.12


D. H. LAWRENCE


COBRA

Uma cobra abeirou-se da gamela
Num dia de calor, tanto calor e eu de pijama,
Para beber da minha água.

Na sombra funda de perfume estranho da grande alfarrobeira escura
Desci os degraus de cântaro na mão
E tive de ficar, ficar ali à espera pois na gamela à minha frente estava o réptil.
Ele desceu por uma fenda do muro de terra na sombra
E no bordo da gamela de pedra arrastou devagar o ventre fulvo e mole
E encostou o pescoço no fundo de pedra
E numas pingas límpidas de água escorrida da torneira
Bebeu aos poucos por fauces lisas
Bebeu de leve por gengivas lisas enchendo o corpo lento e longo

Em silêncio.

Alguém chegara primeiro à minha gamela de água
E eu que vim depois fiquei à espera.

Ergueu a cabeça depois de uns goles tal como o gado
E fitou-me vagamente como faz o gado a beber,
A língua saía-lhe da boca, bífida, súbita; alheou-se um momento
E inclinou-se a beber um pouco mais
Castanho como terra, terra de oiro, saído das entranhas da terra ardente
Nesse dia siciliano de Julho, com o Etna em fumos.

As vozes da minha educação diziam
Que tinha de ser morto esse réptil
Pois na Sicília não há mal nas cobras todas negras mas nas douradas há venenos.

E aquelas vozes em mim diziam: Se fosses homem
Pegavas num pau, partias-lhe a espinha e era o fim.

Será preciso confessar que gostei dele
Que era bom ele ter vindo, convidado silente, beber da minha água
E poder voltar em paz, apaziguado, sem mesmo agradecer
Para as entranhas ardentes dessa terra?

Era cobardia não ousar matá-lo?
Era perfídia querer tanto falar-lhe?
Era humildade sentir tanta lisonja?
E era tanta a lisonja que eu sentia.

E todavia aquelas vozes:
Se não fosses medroso, havias de matá-lo!

Tinha medo na verdade um grande medo.
Ainda assim, maior era a lisonja
Pois ele viera ao meu quintal pedir guarida
Saindo a porta escura da terra de mistério.

Deu-se por satisfeito,
E levantou a cabeça no olhar ausente de quem já bebeu
E a língua súbita saía-lhe da boca como negra noite bífida nos ares
Parecia lamber o lábio
E como um deus olhou os ares em volta, sem ver,
E virou a cabeça devagar
E devagar, devagar como se em triplo sonho
Dispôs-se a desenrolar o seu lento comprimento
E a trepar de novo pela rampa em ruína do meu muro.

E enquanto metia a cabeça naquele buraco horrendo
E se erguia devagar num espreguiçar de réptil que se enterra,
Uma espécie de horror, uma espécie de protesto contra o seu regresso àquele buraco negro e horrendo
Contra aquele retorno deliberado à escuridão no arrastar lento do corpo
Apossou-se de mim ao vê-lo de costas.

Olhei em volta, pousei o cântaro,
Peguei num pau grosseiro
E atirei-o à gamela num estalido.

Acho que não lhe acertei
Mas o resto do corpo entrou de repente em convulsão brusca e descomposta
Contorceu-se como relâmpago e sumiu-se
No negro buraco, na fenda de bordos térreos da face do muro;
Olhei fascinado na luz do meio-dia intensa e calma.

E arrependi-me no mesmo instante.
Pensei que fora um gesto ignóbil, perverso, obsceno!
Tive nojo de mim e das vozes da minha maldita educação humana.

E pensei no albatroz
E desejei que voltasse a minha cobra.
Pois esse réptil parecia-me um rei de novo
Rei exilado deposto sem coroa no mundo subterrâneo
Prestes a ser de novo coroado.
Perdi o ensejo concedido por um dos soberanos da vida.
E tenho de expiar uma atitude: Ser mesquinho.


(in Gencianas Bávaras e Outros Poemas, versão de João Almeida Flor, Na Regra do Jogo, 1983)

7.7.12

JOÃO RUI DE SOUSA


FRAGMENTOS PARA DEBUSSY
Evocando o Prélude
à l'après-midi d'un faune

Cíclica vertigem
aquecida ao rubro do teu canto
- espero e invoco.

Sinais de búzios,
compassados ecos,
completos sempre
em vegetal memória.

Esperar? Exacto
- que há sempre mais e mais
na voz da água pura.

Pedir? Também
- que é sempre cheia e grave
a face que escolheste.

Querer mais? Muito mais?
Não sei. Fértil e exacto
o que me dão, nada mais me cabe.

*

Se invoco um nome grato
é porque, à luz com que eu encontro
a claridade em castos olhos,
invoco, julgo, um nome com o meu sangue.

Se invoco um nome afável
- guitarra        harpa
                               astro puro        areia -
é porque sei ou sinto
que é aí - está aí -
a paisagem que me abrange.

*

De novo surges
como névoa ao sol da vida,
estrídulo arco,
como um papel branquíssimo
sobre a areia.

De novo surges...

*

Singelo e ao vento, persigo-te
(nos ramos, na flor, na aragem)
até encontrar a oculta voz,
o espírito puro
com que tudo se move e dilui
- para beijá-lo.


(de Circulação, 1960)



6.7.12

GERRIT KOMRIJ

«Uma migalha na saia do universo»

As palavras dos poetas parecem, às vezes, servir só para serem citadas pelos parvos. O dito de Pessoa «A minha pátria é a língua portuguesa», que políticos e oradores de copo de água repetem até à exaustão em actos oficiais, é disso exemplo. Assim parece ter Goethe afirmado «O homem só se reconhece no homem», e também perante isso nos calamos reverentes. Receio que muitos dos políticos e oradores de copo de água pretendam sugerir que Pessoa tinha coisa de género nacionalista em mente, como se nessa asserção algo luzisse duma identidade patriótica ou dum sentimento colectivo. Tenho muita pena deles, mas Pessoa não falava a língua dos parvos. Estou convencido de que esse dito significa exactamente o contrário do que os oradores de copo de água no seu enlevo suporiam. Aí se afirma que o poeta vive no idioma e não num sistema político. É a língua a estabelecer as suas fronteiras, não o Estado. Poetas e poesia — eles vivem numa mesma pátria, seja o texto em swaíli, em português ou em neerlandês.
[...]

A poesia é maneável e fugidia, ela oferece delírio e ilusão. Oferece emoções por medida e de encomenda. É só o poeta dizer o que quer. Um poema é capaz de tudo. A poesia tem uma paciência infinita. Esse dado parece-me em todos os países o mesmo. Para tal não são precisas pátrias.
O idioma, esse, sim, é preciso. O idioma todos os dias é contaminado. Em qualquer país. Com o idioma atrai a si o vendedor da praça os clientes, com o idioma alivia um adolescente o coração a transbordar, com o idioma o político dá ao seu público a impressão de possuir um cérebro. É esse o idioma que o poeta usa. Imagine-se o seu infindável martírio.
Quanto mais o idioma é contaminado, com tanto maior firmeza tem o âmago da poesia de opor resistência. À medida que as palavras práticas ganham terreno, cresce a necessidade do poeta de «lavar» as suas palavras, tirar-lhes a sujidade, desinfectá-las. A poesia é o último reduto num mundo «inimigo da palavra». A verdadeira pátria dos poetas é a lavandaria. Sem a possibilidade de, num poema, guardar a carga original das palavras, ou de exactamente modificá-la, colocando-as numa zona de tensão fechada, o pensamento deixaria de existir.
A esta luz, qualquer preocupação com o que fosse «uma» poesia portuguesa ou «uma» poesia neerlandesa seria ociosa.

[...]
Países pequenos como Portugal, a Bélgica e a Holanda sabem pouco uns dos outros — e isso apesar das semelhanças da sua história e do seu desenvolvimento. No terreno da cultura, põem os olhos de preferência nos países grandes. Até os poetas não parecem desejar outra coisa. Tal vaidade não deve ser-lhes levada a mal. É evidentemente mais interessante ser traduzido para francês, alemão ou inglês do que para neerlandês, sueco ou português. No entanto, não seria insensato de vez em quando empreenderem juntos qualquer coisa contra a hegemonia de línguas mais poderosas. Mostrando uma vez ou outra mais interesse pela cultura uns dos outros. A sobrevivência da pátria do poeta depende disso. Depende disso a sobrevivência das diferentes línguas que lhes servem de veículos da arte.
A indiferença política e as leis do mercado arruinam (e por fim destroem) uma língua. Os países mais pequenos não devem ter sempre tantos receios quando da sua língua se trata. Não é acomodando-se e como que eliminando-se culturalmente que os países pequenos alcançam o seu objectivo, mas apresentando-se uns aos outros com mais clareza e mais energia. Os países grandes, não tenhamos medo, hão-de compreender o nosso brio. A nossa luta é também a deles. Veja-se a guerra que a valente prima, a França, dá à invasão linguística pelo grande tio, os Estados Unidos.
Um purismo à francesa é coisa que também não precisamos de exibir, claro. Uma osmose entre os idiomas pode ser frutífera. Quer dizer — até às exactas fronteiras da poluição linguística de que a poesia é guardiã.
[...]


(excertos da introdução a Uma Migalha na Saia do Universo, tradução de Fernando Venâncio [e outros], Assírio & Alvim, 1997 - documenta poetica)


4.7.12


MANUEL ANTÓNIO PINA


4 DE JULHO DE 1965

segundo fontes geralmente bem
os altos interesses nacionais
foi recebido carinhosamen-
pretende para fins matrimoniais

entre os países menbros da otan
as suas provas de doutoramento
sua excelência o presidente da
a conferência do desarmamento

excelentíssimo senhor director
ardilosos amigos do alheio
nosso prezado colaborador
atrasos na entrega do correio

não perca esta excelente ocasião
da santa madre igreja faleceu
resposta em carta à administração
de casa dos seus pais desapareceu


(de Ainda Não é o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma é Apenas Um Pouco Tarde, 1974)

20.6.12


JORGEN THEOBALDY


Uma cerveja, por favor

Eu podia habituar-me a ser uma pessoa
arrumada.  Aqui chega ao fim um dia calmo
todo o dia o telefone esteve calado, e em silêncio quase rebenta
o cesto da roupa debaixo do lavatório.
No écran explode uma casa perante a cara
espantada do locutor.  Oh the fucking news!

O que eu quero é sobretudo amor. Não quero
preocupar-me com a marca das minhas cuecas, das minhas meias
que me oferecem pelo Natal, nos meus anos,
pela Páscoa e no dia em que morrer. Em criança pedia
um comboio e recebia uma camisa
coisa prática! embrulhada em celofane, presa com mil alfinetes.
Este poema não é praticamente nada. Mas pensa bem:
Como há-de desaparecer o que nós não derrubamos, a não ser o sabonete
na água do banho? Estou outra vez a fazer humor, embora não
me sinta  voltado para aí.  Terei mesmo
de lavar a cabeça antes de tu chegares? Lavar a cabeça
é uma recordação terrível...

E depois, amo toda a família, especialmente a minha mulher
que não é da família. Como? Eu não disse nada.
Acabou o noticiário do dia, o dia em noticias, the fucking
news. Hoje houve boas notícias. A  Casa da América
foi ocupada, não digo onde.  Começa o filme
e ainda não lavei a cabeça!
Tu não és a minha mulher. Amo-te. Protege-me
que estou a fumar demais! Fica-se nervoso nesta casa
depois de 1933 e depois de 1945. Estás a ligar alguma coisa ao que eu digo?

De repente encontro-me num café, com grande barulheira
ao balcão. Este poema está cheio de potencialidades
como a nossa vida. Evidentemente que não se passa um dia
sem álcool. Ah, a bebida é que dá gosto à vida.
Mehdi já lá está, bêbado como um cacho.  Também tu já chegaste há
um bocado, e tens razões para não falar comigo.
Vai alta a noite, a música está alta. Peço uma aguardente clara
para a minha cabeça ainda clara. Uma cerveja, por favor. Seja o que for
que tu penses de mim, é importante que eu te diga: também tu
escreveste este poema. Não foi arte nenhuma; foi escrito
de costas para a janela.


(in De Costas para a Janela / Poesia Alemã Contemporânea - I, Selecção e tradução de João Barrento,  colecção O Oiro do Dia, 1981)

19.6.12

JORGE DE LIMA



CANTO III
POEMAS RELATIVOS

X

Vós não viveis sozinhos,
os outros nos invadem,
felizes convivências,
agregações incômodas,
enfim ambientalismos,
e tudo subsistências
e mais comunidades;
e tantas ventanias,
acotovelamentos,
desgastes de antemão,
acréscimos depois,
depois substituições,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;

os hábitos, os vícios,
as moças embutidas
mudando vossas cartas;

sereis administrados
no sono e nos pecados,
vós mapas e diagramas
com várias delinqüências,

e insanidades várias,
dosando o vosso espaço,
pesando o vosso pão
de tempos racionados;
e não tereis vivido
e não tereis amado,
porém sereis morrido.

XIII

Uma janela aberta
e um simples rosto hirto,
e que provavelmente
nela se debruçou;
e nesse gesto puro
do rosto na janela
estava todo o poema
que ninguém escutou;
só a janela aberta
e o espaço dentro dela
que o tempo atravessou.

XIV

O conto era um dia,
um dia futuro,
e dentro do dia
incluído o conforme,
e dentro o que foi
porque fora isso
se tal não se dera,
se o mundo parasse
e o espaço se excluísse;
se a pedra não fosse
o símbolo que era,
pois tudo era um dia,
um dia sem dia,
porém com o poeta
que um dia seria.


(de Invenção de Orfeu, 1952)




18.6.12


FERNANDO GUERREIRO


A pretensão em traduzir por escrito
o que, ao arrepio da faculdade
de simbolização da linguagem,
um dia tinha sentido talvez fosse
o que mais o incomodava na poesia.
De facto, que nome dar ao que,
retirando-se, põe em dúvida
a própria possibilidade do mundo
através da palavra encontrar
para o desconhecido
a promessa de um sentido?
Não era a linguagem que dava
corpo à verdade mas o real,
confirmado na sua ausência,
que obrigava as palavras
a alucinar-se produzindo
o monstro capaz de ocupar
o lugar na parede que, apenas
por existir, impedia o mundo
de sobre si ter ruído. Qualquer
nome de que nos servíssemos
continha em si a memória
atormentada de um corpo
em que as palavras estagnaram,
puxando-o para o fundo,
para a réstea de luz
de que se constitui,
presa dos limos,
a matéria seca do discurso.


(de Caminhos de Guia, Black Sun editores, 2002)

14.6.12

MANUEL PAES


PALAVRA PUERIL

Palavra pueril
que amarras o mundo
encarceras o pensamento
subtil, tudo reduzes
a gramática biológica

nasceste da ausência
e das invocações de guerra
paixões, navegações
clãs, shamans, altamiras
espelhos do vazio

redutora, simplificas
e a necessidade estruturas
em nossa errância na terra.


(de Em Equilíbrio no Tempo, tea for one, 2012 - Colecção matéria mínima)

13.6.12


ANTÓNIO BARAHONA


POEMA UNÍVOCO
À MANEIRA DE PREFÁCIO
À MEMÓRIA DE FERNANDO PESSOA

«Dó é unívoco do sentimento de compaixão e da primeira nota da escala musical.» D.P.I.

Eu tornei-me céptico, épico profissional,
mente amorosamente natural ao frio das
formas, lisérgico ao luar entre as urtigas
Desde Ptolomeu que andamos às cegas
com sistemas que são maneiras de treinar
o pensamento, mas não poemas que contêm
o mo(vi)mento, isto é a eternidade com
provada no esquecimento do assassino
tom da liberdade dos leques lique
feitos sobre os peitos perigosos das
mulheres amazonas uni-seio-nuas
músculos de terra a cintilar d'estrela
na amplidão do arco do cavalo branco
a sangrar do flanco um navio à vela

O perigo é mais sólido do que a pedra, mais
imóvel e mais branco e mais duro, por isso
a dureza consiste numa vantagem por extenso
nas pedras e nos versos que se aproximam do
perigo: os diamantes e os universos de som
sacrário sempre vivo no templo dos poetas
que uivam com voz de trigo e despedem setas

A dureza também consiste numa vantagem dos
seios, e na pronúncia vagarosa de dizer:
mulher de pedra viva dos oleiros, orquídea
dos luzeiros contra a perfídia do mundo,
escultora de escultores no mais profundo
da pedra, petrificada em ave dura que per-
dura sobre a neve eternamente suave

As notas do poeta unificam-se em torno do Nu:
castidade perante a escultura do culto
do arbitrário do signo exacto, des-
construtor com pacto do elo da linguagem e
das coisas, engenheiro da maquinaria da
transcendência metalicamente real no re-
flexo d'olhos ténue d'Eglantina que sorri
anterior ao naufrágio onde perdi Dinamene

Adquirir uma «existência opaca» a fim
de ouvir o órgão nas margens do Sena quando
poemas ao poema o poeta escreve insinuando
que a loucura amadurece, despojado de memória,
proscrito da história que não o esquece, com-
fundindo-o com os símbolos, o quadrado e o cír-
culo, signos da transcendência realmente meta-
lica nas teclas que desprendem pombos quando

Convenhamos que o amor é experiência, base
da ciência da poética capaz de reconstituir
a ausência: o poeta é instrumento e ins-
trutor, conhecedor da cadência, repetidor
até em termos de ternura que enternece o texto
o homem fragmentado entenebrece o gesto

Doença, não há dúvida, na direcção de um
vento qualquer a omnipresença da barca unívoca
de velas desfraldadas a navegar pacífica e à
vante o elefante a ganir a teologia da mulher
um cavalo branco galopante a emergir do mar
terrífico claustro da escrita que contém a vida

Convenhamos uma vez mais que o amor é ex-
periência, o amor na cama consciente de uma
técnica, o amor na lama diferente de na água
laminada, a pele macia da lama sem lâminas,
a pele cortada de mágoa na água em chamas
e a palavra fria no poema, flébil mosca, resto
d'orquídea seca na encosta ao sol d'agosto

Sim, experiência de Serenidadeés minha, o a
mor não aquece ao sol, não voa a enegrecer
o ar, não descende de flores: é a fúria de
florir no caos, primeira letra do alfabeto
lua no seu grito, exclamativa na arte de
agarrar silêncio, metê-lo numa caixa com
mãos ávidas, escrevê-lo numa faixa de papel
tumultuário, enquanto esquiva vai à garra
a barca unívoca num mar de mel e laca

Alegria da morte unificada suave, sensitiva
serenidade de agulha e gume, a única pedra
fragmentada na praia, etérea de esmeril,
tépido como um til na palavra manhã a viver
no verão sobre o estrume estético das vacas
sagradas trepidantes no seu vácuo cósmico

A única pedra, dizia, ficou a ver a barca uni-
voca, que convoca a glória do poeta: uni
verso, verificado a ver a barca equívoca,
estame de rosa na relojoalharia do poema, regra
íntima da necessidade do descuido cuidadoso
de noite e de dia e sem sistema d'ir à guerra

Onde está o tempo que ainda não vivi, o qual
se «chama futuro»? Do mal o menos da vida, da
vida o mais do menos que vivemos à despedida
só, no escuro, a pontuação de luz, os líquenes
das vírgulas inspiradas, como no inicial
poema unívoco as mulheres amazonas uni-
ficadas com seus leques liquefeitos
sobre os peitos perfeitos como diques

Boavista, 21-2-77.


(de Pátria Minha, Fiel do Amor, 1978)

30.5.12

BERTOLD BRECHT


MENSAGEM DO POETA MORIBUNDO À JUVENTUDE

Vós, gente moça de futuros tempos e de
Novas auroras sobre cidades que
Ainda não foram construídas, também
Vós, não-nascidos, ouvi
A minha voz agora, de mim que morri
E não em glória.
Mas sim
Como um camponês que não amanhou a leira e
Como um carpinteiro que preguiçoso fugiu
Do madeiramento aberto do telhado.

Assim desperdicei
Eu o meu tempo, esbanjei os meus dias e agora
Tenho que pedir-vos
Que digais tudo o que não foi dito
Que façais tudo o que não foi feito
E que me esqueçais depressa, peço-vos, para que
O meu mau exemplo não venha ainda também a perverter-vos.

Ai, para que me sentei eu
À mesa dos estéreis, a comer do banquete
Que eles não tinham cozinhado?
Ai, porque misturei eu
As minhas melhores palavras
Ao seu pairar ocioso? Enquanto lá fora
Andavam os ignorantes
Sequiosos de aprender.

Ai, porque é que
Não se erguem as minhas canções dos lugares onde
As cidades se nutrem, onde se fazem os navios, porque é que
Não sobem elas como fumo
Das locomotivas dos comboios rápidos, fumo
Que fica para trás no céu?

Porque a minha fala
Aos úteis e criadores
Lhes fica na boca como cinza e gaguejar de bêbedo.
Nem uma palavra só
Eu sei para vós, gerações dos tempos futuros
Nem um gesto a apontar com dedo incerto
Vos poderia dar, pois como
Poderia apontar o caminho quem
O não andou!

Assim só me resta, a mim que assim esbanjei
A minha vida, apelar para vós
Pra que não espreiteis nenhum mandamento saído
Da nossa boca ociosa e que não aceiteis
Nenhum conselho daqueles que
Assim falharam, mas que só
Decidais por vós próprios sobre o que
Seja bom para vós e vos
Ajude a amanhar a terra que nós deixámos decair
E a fazer habitáveis as cidades
Que nós empestámos.


(tradução de Paulo Quintela, in Obras Completas IV - Traduções III, Fundação Calouste Gulbenkian, )

29.5.12


JOÃO GUIMARÃES ROSA


Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de António Dó, tinha um grado jagunço, bem remediado de posses — Davidão era o nome dele. Vai, um dia, coisas dessas que às vezes acontecem, esse Davidão pegou a ter medo de morrer. Safado, pensou, propôs este trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado Faustino: o Davidão dava a ele dez contos de réis, mas, em lei de caborje — invisível no sobrenatural — chegasse primeiro o destino do Davidão morrer em combate, então era o Faustino quem morria, em vez dele. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito não acreditava. Então, pelo seguinte, deram um grande fogo, contra os soldados do Major Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco. Combate quando findou, todos os dois estavam vivos, o Davidão e o Faustino. A de ver? Para nenhum deles não tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses, escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos eles não saíam... Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia...
Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, sem os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça? Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E ele me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O fim? Quem sei. Soube somente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem — deu baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa também, e viesse morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...


(excerto de Grande Sertão: Veredas, 1956)

28.5.12

ALEXANDRE PINHEIRO TORRES


O MONOPÓLIO DA SABEDORIA

Homens sábios avançam pelas planícies
chegam ao pé de nós e dizem      Vocês são
aves de rapina      Nós pequeninos ratinhos
E logo nos crescem duríssimas asas

e garras de afiadas pontas e vemo-nos
a pairar ameaças entre mar e terra      A nossa
sombra alastra nas campinas      sobreiros
e oliveiras      É isto um pesadelo?

Acordamos suando a tactear de novo o mundo
Homens ainda mais sábios entram-nos nas searas
e dizem      Vocês afinal são lobos e nós cabrinhas
Pulando de raiva andamos à volta nas clareiras

repelimos os sábios      mas alguns dos nossos dizem-nos
Olhem como despontam já as vossas orelhas de lobo
E correm amedrontados a juntar-se às cabrinhas
e estas festejam-nos com almudes de vinho e leitinho


(de O Ressentimento dum Ocidental, Moraes editores, 1981)


24.5.12

[outros melros LXV]  

MICHAEL HAMBURGER


Conversação com um melro

'Fazes favor, fazes favor, fazes favor'
começa ele, e eu espero o resto
que vem, indistinto e sem ênfase.
'Afasta-te', creio compreender,
ou 'deixa andar', posso ter ouvido ou não:
as vogais são confusas,
as consoantes faltam.
Oh, e o ritmo é livre
depois desse cortês pedido.

Traduzido, o meu assobio de resposta diz:
'Sê mais explícito. A nossa espécie não suporta
coisas incertas, canções com o fim em aberto.
Ser deixado a adivinhar é mais
do que aguentamos muito tempo.

Ri-se? 'Por favor, por favor, por favor'
é a resposta. E então coloratura, e nela estas frases:
'Eu repito, o fim não cito.
São mistérios, mistérios de cantor.
Improviso, o tempo aviso.
Ora subo, e ora piso.
E volito. Não hesito
se o indefinido imito.
E ora fito, chilrozito. Ora saltito.'


(tradução de Vasco Graça Moura, in Poesia em Lisboa 1997, Casa Fernando Pessoa e P.E.N. Clube Português, 1997)


23.5.12

OCTAVIO PAZ


QUATRO CHOUPOS

Como atrás de si mesma, vai esta linha
pelos horizontes confins se perseguindo,
e, no poente sempre fugitivo
em que se busca, se dissipa

- como esta mesma linha,
pelo olhar levantada,
forma todas as letras
numa coluna diáfana
resolvida em não tocada,
nem ouvida, nem degustada, mas pensada,
flor de vogais e consoantes

- como esta linha que não pára de se escrever,
e, antes de se consumar, reganha corpo,
sem cessar de fluir, mas p'ra cima:

os quatro choupos.
                           Aspirados
pela altura vazia, e, ali em baixo,
num charco feito céu, reduplicados,
os quatro são um só choupo,
e são choupo algum.

                          Atrás, copas em chamas
que se apagam - a tarde, à deriva -
outros choupos, feitos andrajos espectrais,
interminavelmente ondulam,
intermináveis, de imóveis.

O amarelo desliza para o rosa,
no violeta, a noite se insinua.

Entre o céu e a água,
há franjas azuis e verdes:
sol e plantas aquáticas,
caligrafia flamejante,
escrita pelo vento.
É um reflexo, noutro suspenso.

Trânsitos: pestanejar do instante. 
O mundo perde corpo, 
é uma aparição, é quatro choupos, 
quatro moradas melodias.

Frágeis ramos trepam pelos troncos.
São um pouco de luz, e outro tanto de vento.
Vaivém imóvel. Com os olhos,
oiço-os murmurar palavras de ar.

O silêncio segue com o ribeiro, 
com o céu regressa.

É real o que vejo: 
quatro choupos sem peso, 
plantados em vertigem. 
Uma fixidez que se precipita 
para baixo, para cima, 
para a água do céu do remanso, 
num esbelto afã sem desenlace, 
enquanto o mundo zarpa no obscuro.

Pulsar de claridades últimas:
quinze minutos confinados,
que Cláudio Monet viu de uma barca.

Na água, abisma-se o céu, 
em si mesma se afunda a água, 
o choupo é um tiro opalino: 
não é sólido, este mundo.

Entre ser e não ser, a erva titubeia,
aligeiram-se elementos,
os contornos se esfumam,
lampejos, reflexos, reverberações,
cintilar de formas e presenças,
névoa de imagens, eclipses,
isto, que vemos: as miragens que somos.


(de Árvore Adentro, tradução de Luís Alves da Costa, Vega, 1994)

22.5.12



LUÍS QUINTAIS


Vivaldi

Depois de Vivaldi cessará toda a miséria.
Há músicas assim. Vêm até nós
para nos guiarem ao sítio lento

onde a alma se redefine, muda de pele,
já não para o ressentimento, mas para
uma alegria súbita e sem tempo

com a qual a entrevista paisagem
de prenúncios trágicos se suspende,
e uma dança transfigura os mínimos sinais

da celebrada maldição
e os lança aos imensos ventos
da miséria cultivada,

como se lhe oferecesse o voraz alimento
procurado, o que, por estratégia
ou diversão, te roubará ao desespero.

Para que se descreva a partitura,
o testemunho do porvir
onde tumultuados céus se extinguem,

sentirás, com o teu sangue, que alguém — 
Vivaldi — cantou prodigiosamente 
no alto das falésias do tempo,

e conhecendo por antecipação a tua mágoa 
cantou para ti e para mais nenhum outro.


(de Angst, livros Cotovia, 2002)

19.5.12

JORGE DE SENA


O BECO SEM SAÍDA, ou EM RESUMO...

I

As mulheres são visceralmente burras.
Os homens são espiritualmente sacanas.
Os velhos são cronologicamente surdos.
As crianças são intemporalmente parvas.
Claro que há as excepções honrosas.

II
As pedras não são humanas.
Os animais não são humanos.
As plantas não são humanas.
Os humanos é que têm algo deles todos:
o que não justifica o panteísmo,
nem a chamada «Criação».

III
Humanamente feitas são as coisas,
e as ideias, as obras de arte, etc.
mas que diferença há entre ser-se uma besta na Ilíada
ou no Viet-Nam?

IV
Há por certo os poetas, os santos, e gente semelhante
(os heróis, que os leve o diabo)
- mas desde sempre, em qualquer língua,
qualquer das religiões (ilustres ou do manipanso),
fizeram o mesmo, disseram o mesmo, morreram igual,
e os outros que nascem e vivem e morrem
continuam a ser a mesma maioria triunfal
de filhos da mãe.

V
Que haja Deus ou não
e a humanidade venha a ser ou não
e os astros sejam conquistados (ou não)
apenas terá como resultado o que tem tido:
uma expansão gloriosa do cretino humano
até ao mais limite.

VI
A vida é bela, sem dúvida:
sobretudo por não termos outra,
e sempre supormos que amanhã se entrega
o corpo que já ontem desejávamos.

VII
O poeta Rimbaud anunciava o tempo dos assassinos.
Sempre foi o tempo dos assassinos
- e mesmo um deles é o que ele era.

VIII
Gloriosos, virtuosos, geniais,
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Ignorados, viciosos ou medíocres,
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Do primeiro, do segundo, do terceiro ou quarto sexo:
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Em Neanderthal, Atenas, ou em Júpiter
- burros, sacanas, surdos, parvos.

IX
Canção, se te culparem
de infame e malcriada,
subversiva ou não,
ou de, mais que imoral, desesperada;
se te disserem má, mal inventada,
responde que te orgulhas:
humano é mais que pulhas
e mais que humanidade mal lavada.

15/10/1970


(de Exorcismos, 1972)

17.5.12


[outros melros LXIV] 


ANTÓNIO DE MACEDO PAPANÇA, CONDE DE MONSARAZ


A CALMA

O sol caustica a prumo a rústica devesa!
Exala-se da terra um bafo ardente; o gado,
Sedento, mal resfolga à sombra do montado,
Nas fulvas crispações dessa fornalha acesa.

Canta, refresca o ouvido a água na represa
Da azenha e ao longe a voz dum melro fatigado
Quebra, de quando em quando, o silêncio pesado
Da sesta, que adormenta em roda a natureza -

Arquejam, bico aberto, as galinhas e os patos;
E eu que, a escorrer suor, abro os olhos a custo,
Esperguiço-me, acordo, e artista como um grego,

O meu olhar pagão vê, através dos matos,
Mover-se o corpo nu, elástico, robusto,
Dum filho do moleiro a chapinhar no pego.


(de Musa Alentejana, 1908)

10.5.12

ALBERTO PIMENTEL / JOSÉ DANIEL RODRIGUES DA COSTA



BALÃO (O) aos habitantes da lua. Poema, heroi-comico em hum só canto. Por José Daniel Rodrigues da Costa. Lisboa, na Impressão Régia. Ano 1819.
Compõe-se de um prólogo em verso decassílabo pareado e de 80 estâncias.
O assunto é a viagem de um aeronauta à lua e a descrição dos usos e costumes estabelecidos entre os habitantes daquele planeta.
A graça do poema — e alguma tem realmente — está  em passar-se na lua justamente o contrário do que se passa na terra. Por exemplo:
Temos quem nos governe com respeito,
Com justas Leis, que sobre nós imparão,
Tudo, quanto se manda, he logo feito,
Porque as Leis do paiz nunca se altérao.
Este mundo he da Lua, e mui perfeito,
Onde os raios do Sol mais reverbérão;
E por nosso brasão nos nossos planos,
Chamão-se a estes Povos os Lulanos.
O nosso Herói, que ao longe descobria
A Praça, que servia de Ribeira,
Lhe perguntou se sempre se comia
Peixe fresco da mão da vendedeira?
Disserão-lhe que sim, porque ha vigia,
Que manda o peixe podre á montureira;
Que o dono soffre á força esta diffcrença;
Mas que o Povo não compra uma doença;
Que nos açougues ha igual revista,
Nas tendas, padarias, e nas fructas,
Que estas em sendo verdes, mesmo á vista
De seus donos se pizão sem disputas;
Ninguém com estas cousas se malquista,
Que ha para as regular certas minutas,
Que assim a gente vive satisfeita,
Porque quanto se compra, se aproveita.
José Daniel foi, como se sabe, um gracejador popular e não um escritor ilustrado; mas na sua graça há observação e, por isso, uma eterna oportunidade.
Do Balão fez-se uma edição no Brasil em 1821.

(in Poemas Herói-Cómicos Portugueses (verbetes e apostilhas), editores Renascença Portuguesa / Annuario do Brasil, 1922)

9.5.12

ANTÓNIO DACOSTA


Está calor em Évora, 1983
acrílico sobre tela
146 x 114 cm


ARTUR GOULART


Pequena serenata eborense para Dacosta
(em três andamentos)

I

Chegou notícia da tua morte.
Morte aparente a tua, António,
fingida sem fingimento,
que de verdade se faz a tua estrada,
ausente, mas presente
como há muito tempo
em Paris, em Évora ou onde te escondes,
longe da ilha, mas na ilha sempre.


II - Uma romana em Évora

Lento se arrasta o espectro da cidade
- Liberalitas Julia dizem -
Caem encantados os últimos sons da tarde
Dorido corre o sonho feito grito e cor.
Romana em Évora branca compostura
Parede-pano-planície lavada em sol
Inviolado passado marítima candura.


III - Está calor em Évora!

Gémeas esperanças de branco e de ternura
no apetecível espelho sobrevive
longa trança de azulejos.

Está calor em Évora!

Sente-se o sol redondo absoluto
no dourado recinto esvoaçam
incontidos os desejos.

Está calor em Évora!

Arde violenta a pedra
a sombra entorpece sonolenta o cio
da terra em fresco desabafo
apenas as fontes e as palavras...

Está calor em Évora!

Dezembro 1990

(de No fio das palavras, Santa Casa da Misericórdia da Vila das Velas, 2010)



8.5.12

ANTÓNIO CUNHA RIBEIRO


ALGURES, NO MUNDO

Veio-nos o exílio 
roubar a terra 
onde nascemos 
e sonhámos morrer.

Tomámos um bote
um par de remos
(nem uma bússola ao menos
imaginem)
e fugimos
por entre búzios e balas.

Estamos aqui 
algures 
no mundo.

Escreva-nos  quem quiser 
ou quem puder.

(de Rapaz com um Búzio, colecção Gávea/Glaceal, 1971)

7.5.12


ANA PAULA INÁCIO


como se o vento trouxesse
recados
que pudesse abandonar
ao serviço do mensageiro

como se o vento te pudesse
levar e as palavras transformar
no milagre da cerejeira

não descuides o vento
que quem uiva
é lobo faminto

rodeia-te antes do essencial
faz-te cozinheira, semeia o teu quintal

o que por natureza rola
há-de rolar
e tu sozinha
o que podes contra o vento?


(de Vago pressentimento azul por cima, ILHAS, 2000)

6.5.12

RITA TABORDA DUARTE


TORNAR-SE O SER CRIADO EM CRIADOR

A Francesco Petrarca
Justo é saber que cada um já    retomou
A falsa-humilde condição de um servidor
E por fim finja não ser ele o criador
De quem afinal fingimos      que nos criou

Porque alguém que escreve é também alguém que é lido
Por um outro alguém que se lê           como num espelho,
À certeza inquieta do gesto     devolvido.

É ténue a linha entre a verdade e a aparência :
E se o estilo é doce é menos novo do que é velho,
Que só pel' efémero se sustenta a permanência.

Nem se sabe por que medida se mede o homem
Sequer de quem nos recebemos por herança
Mais: talvez só    sejamos sombra    à semelhança
Das demais fábulas absurdas que nos consomem


(de Na Estranha Casa de Um Outro [Esboço de uma biografia poética], edições Asa, 2005 - colecção pequeno formato)

25.4.12

EGITO GONÇALVES


A PRIMAVERA


Pouco sabemos sobre a Primavera!

Mas sabemos que as árvores reverdecem,
navios dançam sobre vagas curtas
e às janelas abrem-se os sorrisos
que adoçam os olhares e as manhãs.

Sabemos que o amor vem dos telhados
para ceifar os restos da agonia
e no ar límpido que anuncia o Verão
a coragem ganha alento, novos ritmos.

Sabemos que são fáceis as viagens
e o lançar de escadas sobre o abismo;
que os ventos são amenos e é possível
com um sopro afastar o silêncio e a angústia.

Sabemos que um relógio quebra a inércia
e ordena que se queimem os arquivos;
que há pássaros e peixes que perfuram
a rede com que o cerco nos limita.

Sabemos que então se lavra a terra
onde germina o pão e os lilases
e é doce repousar sobre os teus seios
— primaveras também, esperança, vida...


(de Poemas Políticos (1952-1979), Moraes editora, 1980)

23.4.12

ANTÓNIO SALVADO


A POESIA

Difícil, estreita passagem,
força quente perscrutada,
corpo de névoa, de imagem,
com sulcos de tatuagem,
voz absoluta escutada...

Destino de aranha, tece
com fios vários da vida
alegria se amanhece
ou chora se a luz fenece
pela noite perseguida.

Intimidade exterior,
pureza de impuras formas,
conhecimento e amor,
água límpida, estertor,
sem regras feita de normas.


(de Difícil Passagem, 1962)

19.4.12


PAULO JOSÉ MIRANDA


Desejo

A pele alva, o esplendor do inverno, o desejo.
Tocávamo-nos de tão perto, ríamos,
junto a um muro ervas rasteiras, nem um beijo.

Daqui ouvíamos a voz dela nesta praia
«... as flores, os caminhos, a solidão,
provavelmente o que mais retenho de Agostinho

Baptista, o que mais gosto, tu não?»
Mas do que gostava mesmo era dos seus olhos,
da sua boca, de imaginar como seria.

No carro vi as suas pernas conduzirem-me.
«... sim, sim. É o mais antigo e o mais moderno
dos poetas d'hoje...» Parou, saímos.

Junto ao mar doía a demora da entrega.
O vento, contrário ao previsto, ajudava-a
e foge-me com gestos precisos «... no fundo

não sei bem porque gosto dessas metáforas.»
Sentámo-nos. «A poesia deve ser assim,
imagens vindas de longe por uma dor tão perto.»


(de A Voz que nos Trai, livros Cotovia, 1997)

16.4.12


O vento a fazer-me chorar, o vento
Solução fácil para a descoberta
Da desilusão. O vento é a perda
Do corpo arrumado, dos dedos limpos,

A dar-me conta da força que tenho
Em cada fenda nos lábios. O vento
Coisa invisível, macia, letal,
Sopro em mim de fora, desordenado.

O vento é sal, subida, espécie de onda
A cobrir saudades na praia mansa
Em que os pés se enterram na vaga areia.

E muda, o vento, quando agita árvores
De grande porte, de folhas incertas.
Muda para ser o que é, silente.

3.4.12


DIANA ALMEIDA


HOJE NOS SUBÚRBIOS À TARDE
(ao Eduardo Guerra Carneiro)

acredita na inspiração?
poderia ter perguntado
sempre a respirar falava
de poemas, claro
e hoje nos subúrbios à
tarde cinzenta de um maio
invernoso, foram-se as andorinhas
mas os pássaros cantam ainda
a anunciar a madrugada
respondem ao seu assobio
encantado até, ao abrir a
janela, para o rio azul cobalto
amanhece tão depressa na
cidade o chá arrefecia nas
chávenas dos anos 30
(casamento dos meus pais,
sublinhou, partira já um outro serviço)
era tília rosada, uma tisana,
poderíamos talvez ter feito uma
infusão de trevos de quatro folhas,
nascia um terceiro no vaso da
cozinha por cima de uma colher de pau
como estaca.

O Príncipe da Noite guiou-nos
numa atitude de profissionalismo
solícito até ao camarote presidencial
de onde expulsou uma puta grande
um travesti de branco e um homem
as russas acabavam uma dança de
ventres e lantejoulas penas na cabeça
um cenário de David Lynch
que me fez lembrar Blue Velvet em
vermelho, num dos cabarets
mais antigos de Lisboa
(espaço que seria depois retratado em
uma lamentável revista aburguesada,
transpirando luzes e efeitos hilariantes,
ainda em cena...), genuína
miséria, o Peter não pode entrar
de ténis e como tem um pé
muito grande, constatou consternado
o primeiro empregado antes
do Príncipe, não lhe podemos
arranjar sapatos, e eu divertida
nos meus doc martins esboroados
salva pelas conveniências.

de táxi vamos sempre mais longe
pelas ruas enlameadas da
cidade à noite cálido álcool
pode sim mas tenha cuidado
com os estofos, a língua queimada
do tabaco com brandura ao
contrário dos costumes nacionais
ferozes insurreições evocadas nos
dedos ó profeta de revoltas adiadas.
que vai embalado por um saudosismo barroco
os sonhos de cristais: Lucy in the
sky with diamonds, candeeiros.

de que falarão os poetas?
olhos de mulheres últimas
como o sol, a própria luz nos dias
as palavras que dizem outros poetas
como tesouros, junto às plantas
na casa esses livros a crescer
e também de música a
memória como uma longa ausência

de que falam os poetas,
senão de amor?


(in Dez, edição dos Autores, 1995)

2.4.12


LUÍS AMARO


CREPÚSCULO

Saudade o que sinto
no íntimo da alma
e segreda baixinho?

Calou-se o mundo.
Já me não perturbam vozes
alheias... Estou sozinho

e é quase noite. Vou,
pela rua, esquecido
do dia que findou,

e é qual uma doçura
a envolver-me, a mim
que já supunha ferido

da vida... Caminho,
os outros seguem... Eis-me
num canto de jardim

a divagar... E penso:
porquê esta saudade
dum bem que nunca foi?

Ah, de ilusões vivemos!
Inda que sejam falsas,
nós próprios as erguemos.

E a noite nasce, branda…
Regresso, já saudoso
desse anónimo instante
breve, silencioso


(de Dádiva, 1949 / in Diário Íntimo, &etc, 2006)

1.4.12



[Poesia Incompleta - logótipo, por Luis Manuel Gaspar]


Duas pedras.

De que bolso sai
(para que regaço regressa?)
Cada uma?

31.3.12

FERNANDO ESTEVES PINTO


Improvisas uma forma de aceitação enquanto escreves.
Por exemplo o tempo a semear estacas
em redor do teu pensamento.

Também Ellington sopra pregos harmoniosos
numa intensa dança ao ritmo do medo.

Uma imagem de alicerce a ruir:
tudo o que reúnes na tua loucura.

Como um programa de entretenimento
os rostos fermentados num silêncio ofensivo
os aplausos do desespero quando a razão
é a arte das palavras interiores.

Nenhuma multidão é um antídoto
para os múltiplos rostos que exibes
em confronto com o fragmento feliz.


(de Área Afectada, Temas Originais, 2010)


DUKE ELLINGTON


 


30.3.12


[a propósito da notícia divulgada e desenvolvida pela Joana Lopes neste post]

RUTH FAINLIGHT


Seres Fabulosos

É difícil não pensar no Atlântico
e no Mediterrâneo como dois
seres fabulosos, às vezes guerreando-se,
outras em paz. Tantos mitos
e histórias registam os seus encontros
em Tanger, Tarifa, Gibraltar...

Mas para mim, o encontro dessas águas
é significado não por bandeiras ou estátuas
mas por barcos a meter água atafulhados de pessoas
desesperadas para alcançar a fronteira final
antes de serem apanhadas por uma lancha de alta velocidade
da polícia, ou afogadas numa tempestade...

O que eles sonham: ser acolhidos algures
a norte do Mediterrâneo,
longe do Atlântico, é pouco provável
que aconteça. Aqueles seres fabulosos
que lhes controlam o futuro raramente concedem
boa fortuna - indiferentes como o oceano.


(traduzido por Helena Barbas, in No Cais da Poesia 2, editorial Teorema, 2006)

15.3.12


ANA HATHERLY


Falo do que é físico

Falo do que é físico porque não tenho outra realidade.
Falo do corpo
do mundo
do que ainda não sabemos e chamamos divino.

Falo do que é físico
porque tudo o que é real tem corpo e ocupa espaço.

Falo disso.
Falo do que existe
e tudo é tanto que nunca chega o tempo
                             nunca chega o fôlego.

Vejo até à asfixia
gente, coisas, o invisível.

Tudo me faz estar em permanente frémito
sair para a rua de noite
e andar até cair de cansaço.
Pensando em tudo isso
extremamente sobreposto
como se uma grande dor não anulasse outra
como se fosse possível
pensar em mais de uma coisa de uma só vez
sentindo o simultâneo impossível
querendo abranger
a incontrolável voracidade dentro de tudo.

Corro por mim fora
como um grande atleta
campeão de barreiras e distâncias invencíveis
tentando vencer
mas tudo é enorme e intrincado
tudo em mim são olhos vigilantes
sem jamais pálpebra.

Mas tudo isso não chega.
Tudo é enorme
e morro tão depressa


(de A Idade da Escrita, edições Tema, 1998)

13.3.12


PAULO DA COSTA DOMINGOS


Inúteis. O desenho: uns tomam-no de suas hortas
nas traseiras; outros, do encavalitado de ares
condicionados; além atiram comida das janelas.
Gatos esperam que nunca o deus do trabalho e
das férias lhes feche a torneira desse maná, inúteis.
Como, aliás, devem ser os versos, espreguiçados
ao longo de um muro, miticamente branco por
baixo do musgo. Que por detrás de um veículo
topo de gama acabamos sempre por encontrar
nabiças, um seu familiar que não limpou ainda
a lama das botas, e traz da encosta uma gritaria
impossível de miúdos maltrapilhos e farinha no
sabugo. Não fora a destreza dos gatos, e outro galo
cantaria. E eu, perplexo na barafunda de opiniões
e de soslaios que me fixam, preparo meu salto
antes que, piegas, me abandone a poesia, versos
inúteis.


(de Nas alturas, frenesi, 2006)

5.3.12


MANUEL DE SEABRA


– Sabes o que fazia eu em França?
– O Sabaté disse-me.
– Não disse nada. O Sabaté não te disse nada.
– Bem, – murmurou Queralt.
– Vivia à custa duma gaja.
– Ah!
– Não te admiras?
– Eu disse «Ah!»
– Nunca viveste à custa de uma gaja?
– Não. Sempre assaltei bancos.
– Não sabes, portanto, fazer outra coisa.
– Não.
– Eu nem isso. Nem assaltar bancos. Só sei beijar a Elisenda. Mas isso foi há muito tempo. Ela agora tem outro para fazer-lhe isso.
– Tens ciúmes?
– Nada. Daqui a uns anos está velha e então já não haverá ninguém que queira beijá-la.
– Oh!
– Que é que quer dizer esse «Oh!»?
– Nada.
– Dantes queria ser escritor, sabes?
– E que escrevias tu?
– Histórias. Escrevia histórias horríveis. Mas encontrava sempre algum sentido nos homens.
– E porque não continuaste?
– Não. Que queres? Um dia descobri que esse sentido que eu encontrava nos homens era falso. Ficavam só as histórias horríveis. Foi então que deixei de escrever.


(excerto de Os Sobreviventes, colecção Imbondeiro, 1964)

4.3.12


MANUEL RESENDE


POR EXEMPLO

Por exemplo: os cheiros não têm nome
– Nem as nossas penas e alegrias.

Como separar o cheiro da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos,
Da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos?

As palavras cobriram com o seu mar
A maior parte da terra
E lá dentro já só vivem peixes mudos
E plantas meio descoradas,

Mas
Ameaçadoras
Ou aduladoras
Embateram impotentes
Contra as falésias onde
Começa o reino dos cheiros e da emoção.

Como dizer
O cheiro da alfazema, da urze,
Dos beijos ou dos corpos,
Ou disso tudo junto?
Só estando lá.


(de O mundo clamoroso ainda, Angelus Novus editora, 2004)

2.3.12


[outros melros LXIII] 

GEORG TRAKL


CANTO DUM MELRO PRESO
A Ludwig von Ficker

Hálito escuro na verde ramaria.
Florinhas azuis pairam em volta da face
Do solitário, fazendo morrer o passo
Dourado sob a oliveira.
Levanta voo a noite em asa ébria.
Tão baixo sangra humildade,
Orvalho, que manso goteja do espinheiro em flor.
Compaixão de braços radiosos
Abraça um coração que quebra.


(in Traduções II – Obras Completas de Paulo Quintela, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998 – original de Sebastião em Sonho, 1915)

1.3.12


TERESA ZILHÃO


27

Se queres um tesouro, procura um peixe
no núcleo da maré cheia, onde na seiva
subaquática milhares habitam.
Num simétrico reencontro, nossas células
diferem mas partilham em comunhão todo
o conhecimento. Difícil será isolá-lo e
galopar até à sua guelra que cantará:
«Nada está parado pois tudo se move e tudo
vibra, olha o golfinho que tudo partilha.
Na sua ave de saber, ajuda em silêncio
e, no não manifesto – brilha... brilha.»


(de Novo Palco, Difel, 1998)

29.2.12


MÁRIO BOTAS

 (a partir de um quadro)


Romance de D. Sebastião de Portugal e Gabriel de Espinosa Pasteleiro em Madrigal

em memória de Mário Botas

Romance de cordel impresso anonimamente em 4 de Agosto de 1983 e encontrado por Almeida Faria

I

Em Portugal houve um rei
de nome Sebastião
era um dos donos do mundo
ele e Felipe II
seu tio e seu sucessor
como contarei depois

Este D. Sebastião
nasceu póstumo do pai
aos três anos era rei
aos onze anos sofria
de qualquer venéreo mal
que ficou por explicar

Não queria D. Felipe
dar-lhe em casamento a filha
enquanto se não curasse
o que nunca sucedeu
e assim este rei cresceu
doente e desesperado

Tomou horror às mulheres
cujos olhares evitava
educado pelos padres
achava-as causa do mal
que sofria em sua carne
e o tornava incapaz

Chegado aos vinte e quatro anos
juntou todos os navios
que conseguiu reunir
dentro e fora do país
e mais três mil mercenários
e mais soldados do Papa

E em 25 de Junho
zarpou para o norte de África
em derradeira cruzada
até que em 4 de Agosto
em pleno deserto ardente
sete a oito mil soldados

Sendo uns dois mil a cavalo
de armaduras a escaldar
sob o incêndio do sol
e armas que a grande armada
trouxera inúteis a bordo
pesadas para o areal

Morreram às mãos dos árabes
que ágeis em volta giravam
e com leves cavaleiros
depressa os desbarataram
trucidaram saquearam
em poucas horas fatais

Assim acabou a vida
do jovem rei desgraçado
do jovem rei suicida
em vingança contra a sorte
que o fez doente e demente
em vez de são e sensato

Assim morreu um império
que ao fim do mundo chegava
assim começou o quinto
império que nunca será
assim chegámos ao fim
do rei muito desejado

Assim em 4 de Agosto
de 1578
morreu louco e temerário
o senhor de Portugal
morreu ele e a fina flôr
da sua casa real

II

Quase vinte anos passados
apareceu em Madrigal
no deserto de Castela
um pasteleiro parecido
com o rei desaparecido
e em Portugal desejado

Dona Ana de Áustria sobrinha
do rei Felipe II
rei de Espanha e Portugal
recebeu o pasteleiro
na cela do seu convento
e deu-lhe jóias reais

Estavam noivos ou casados
pelo monge Miguel dos Santos
quando Felipe II
prendeu os três e matou
o monge e o pasteleiro
que se dizia ser rei

A pobre Dona Ana de Áustria
foi condenada à clausura
mais dura e mais solitária
por receber no seu quarto
esse D. Sebastião
fosse verdadeiro ou falso

Era isto em Madrigal
longe do mundo e do mar
longe de um país e povo
ainda capaz de durar
outros quatrocentos anos
e durante quantos mais?

Após o grande desastre
sem rei nem roque a reboque
de outros desertos maiores
para lá de longos mares
quem aguarda um rei de fábula
vencido e contudo amado?

Muitos à esquerda e direita
mesmo que não seja rei
mesmo que não traga a lei
mesmo que seja Ninguém
vaga imagem vã miragem
de outro verão em outra idade

Que seja e isso já basta
algo a que a gente se agarre
nesta aridez irreal
que enlouquece e dá coragem
aos cansados de esperar
por promessas de Eldorado

Que a desforra da derrota
venha logo e original
mas não dê muito trabalho
para a gente não cansar
que a vida é curta e confusa
e a morte dura demais

Que o império não exista
senão no sonho é igual
que se prefira sonhar
em vez de ver e olhar
que se force o impossível
é igual tudo é igual

Tudo isto de resto é história
e não sei se tem moral
de um rei louco e de seu duplo
e do duplamente louco
povo deste Portugal.


(gravura e texto in Prelo, 1 – Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Outubro/Dezembro de 1983)