JOÃO GUIMARÃES
ROSA
Olhe: conto ao
senhor. Se diz que, no bando de António Dó, tinha um grado jagunço, bem
remediado de posses — Davidão era o nome dele. Vai, um dia, coisas dessas que
às vezes acontecem, esse Davidão pegou a ter medo de morrer. Safado, pensou,
propôs este trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado Faustino: o
Davidão dava a ele dez contos de réis, mas, em lei de caborje — invisível no
sobrenatural — chegasse primeiro o destino do Davidão morrer em combate, então
era o Faustino quem morria, em vez dele. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou.
Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito não
acreditava. Então, pelo seguinte, deram um grande fogo, contra os soldados do
Major Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco. Combate quando findou,
todos os dois estavam vivos, o Davidão e o Faustino. A de ver? Para nenhum
deles não tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os
meses, escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos eles não saíam...
Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz
de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para
pescarem no Rio. Sabe o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se
compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante,
caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino
pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o
Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram
nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca,
investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria
mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia...
Apreciei demais
essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta
instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, sem os
erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça? Por
exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E ele me indagou
qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O fim?
Quem sei. Soube somente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem — deu
baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e
outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa também, e
viesse morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No real da vida, as coisas
acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro
contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...
(excerto de Grande Sertão: Veredas, 1956)
1 comentário:
Guimarães é mesmo um tesouro, um fantástico. Um dos meus preferidos. Sua escolha foi muito bem vinda, Rui.
Sim, viver é muito perigoso.
"viver, é etecétera"
Beijo meu,
Sam.
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