22.4.06

[outros melros XXXIV - creio ser a este poema que se refere Mário de Carvalho no texto antes aqui publicado]

JEAN-BAPTISTE CLÉMENT

Le temps des cerises


Quand nous chanterons le temps des cerises,
Et gai rossignol, et merle moqueur
Seront tous en fête.
Les belles auront la folie en tête
Et les amoureux du soleil au coeur...
Quand nous chanterons le temps des cerises,
Sifflera bien mieux le merle moqueur

Mais il est bien court, le temps des cerises,
Où l'on s'en va deux cueillir en rêvant
Des pendants d'oreille !
Cerises d'amour aux robes pareilles,
Tombant sur la feuille en gouttes de sang.
Mais il est bien court le temps des cerises,
Pendants de corail qu'on cueille en rêvant!

Quand vous en serez au temps des cerises,
Si vous avez peur des chagrins d'amour,
Evitez les belles.
Moi qui ne crains pas les peines cruelles,
Je ne vivrai point sans souffrir un jour...
Quand vous en serez au temps des cerises,
Vous aurez aussi vos peines d'amour.

J'aimerai toujours le temps des cerises :
C'est de ce temps là que je garde au coeur
Une plaie ouverte.
Et dame Fortune, en m'étant offerte,
Ne pourra jamais fermer ma douleur...
J'aimerai toujours le temps des cerises
Et le souvenir que je garde au coeur.


O tempo das cerejas

Quando cantarmos no tempo das cerejas,
E o feliz rouxinol mais o melro gozão
Andarem em festa.
As formosas terão tolice na testa
E os namorados sol no coração...
Quando cantarmos no tempo das cerejas,
Assobiará melhor o melro gozão

Mas passa depressa, o tempo das cerejas,
Quando os namorados colhem, a sonhar,
Brincos de princesa!
Cerejas de amor de igual beleza,
Caem sobre as folhas, qual sangue a pingar.
Mas passa depressa, o tempo das cerejas,
Brincos de coral colhidos a sonhar!

Quando vos chegar o tempo das cerejas,
Se tiverdes medo das coitas d'amor,
Evitai formosas.
Mas eu que não temo penas dolorosas,
Não hei de perder um só dia de dor...
Quando vos chegar o tempo das cerejas,
Haveis de ter também vossas coitas d'amor.

Sempre adorarei o tempo das cerejas:
Guardo desse tempo no meu coração
Uma chaga aberta.
E mesmo a Fortuna, posta como oferta,
Jamais poderá tirar-me esta aflição...
Sempre adorarei o tempo das cerejas
E esta memória no meu coração.

(tradução minha)
MIGUEL DE UNAMUNO

VII


Cerré el libro que hablaba
de esencias, de existencias, de sustancias,
de accidentes y modos,
de causas y efectos,
de materia y de forma,
de conceptos e ideas,
de nóumeros, fenómenos,
cosas en sí y en otras, opiniones,
hipótesis, teorías...
Cerré el libro y abrióse
a mis ojos el mundo.
Transpuesto había el sol ya la colina;
en el cielo esmaltábanse los álamos
y nacían entre ellos las estrellas;
la luna enjalmaba el firmamento,
cuyo fulgor difuso
en las aguas del río se bañaba.
Y mirando a la luna, a la colina,
las estrellas, los álamos,
el río y el fulgor del firmamento
sentí la gran mentira
de esencias, de existencias, de sustancias,
de accidentes y modos,
de causas y de efectos,
de materia y de forma,
de conceptos e ideas,
de nóumenos, fenómenos,
cosas en sí y en otras, opiniones,
hipótesis, teorías;
esto es, palabras.

Sobre el libro cerrado
que yacía en la hierba
por la luna su pasta iluminada,
mas su interior a oscuras,
descansaba una rana
que iba rondando su nocturna ronda.
¡Oh, Kant, cuánto te admiro!

(de Rimas de dentro, 1923)


VII

Fechei o livro que falava
de essências, de existências, de substâncias
de acidentes e modos,
de causas e efeitos,
de matéria e de forma,
de conceitos e ideias
de númenos, fenómenos,
coisas em si e noutras, opiniões,
hipóteses, teorias...
Fechei o livro e abriu-se
a meus olhos o mundo.
Transposto tinha o sol já a colina;
no céu esmaltavam-se os álamos
e nasciam entre eles as estrelas;
a lua branqueava o firmamento,
cujo fulgor difuso
nas águas do rio se banhava.
E observando a lua, a colina,
as estrelas, os álamos,
o rio e o fulgor do firmamento
senti a grande mentira
de essências, de existências, de substâncias,
de acidentes e modos,
de causas e efeitos,
de matéria e de forma,
de conceitos e ideias
de númenos, fenómenos,
coisas em si e noutras, opiniões,
hipóteses, teorias;
isto é: palavras.

Sobre o livro fechado
que jazia sobre a erva
pela lua a sua capa iluminada,
mas seu interior às escuras,
descansava uma rã
que ia rondando na sua nocturna ronda.
Oh, Kant, quanto te admiro!

(tradução minha)

21.4.06

[500 anos depois - 6]

A propósito dos 500 anos do massacre de Lisboa, o meu amigo Ruy Ventura, "católico praticante", publicou no seu blogue, Estrada do Alicerce, um belíssimo poema dedicado a uma sua antepassada, condenada pela Inquisição ao uso do "odioso 'sambenito'", de seu nome Catarina Dias.
Agradeço ao Ruy a beleza do poema e a beleza do testemunho de, sem deixar de afirmar o que é, não renega a árvore genealógica, que para outros seria motivo de humilhação.
[500 anos depois - 5]

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

CEMITÉRIOS JUDEUS


Também eu tenho mortos sob
a praça e a rua da cidade
e quando me sento, pelo fim de
uma tarde, no conforto dos pesados
bancos de madeira
das igrejas mais antigas
repouso sobre os corpos mortos que
talvez tenham sido lugar de vida. Então
eles também me pertencem e os lábios
como podem dizer palavra de
oração?

E estando vivo o meu pai já não o tenho
porque perdeu o meu nome.

O amarelo, a cor da alegria, junto a
um rosto que se vai esquecer.

Nem os meus sonhos são de um amante
forte. (Resposta a Yehuda Amikai.)

(de Bellis Azorica, Relógio d'Água, 1999)

20.4.06

[500 anos depois - 4]

MÁRIO RUI DE OLIVEIRA

JERUSALÉM


Também assim os versos
caem perto do que esquecemos e arrastam
a mil anos de distância
esta espécie de uivo
este grito de veludo escondido em nós
desde que os glaciares derreteram

nossas mãos
assemelham-se tanto a cidades destruídas

Jerusalém, meu coração

(de Bairro Judaico, Assírio & Alvim, 2003)
[500 anos depois - 3]

FRANCISCO JOSÉ VIEGAS

Uma fronteira ao acaso


Lembras-te de Netafim, caro amigo? Contámos a história
de Deus ao longo da estrada que cruzava o Sinai, rente ao
deserto, à poeira, à luz da noite, ao medo do fim do dia -
o nosso êxodo é de palavras sinceras, de rituais repetidos

sem medo ou vergonha. A história do rabino era fantástica,
atravessando numa bicicleta voadora o céu de Eilat e as margens
do mar Vermelho. A noite colheu-nos ao volante do carro,
como um resumo da história de Deus. É esta a nossa sinagoga:

o deserto, os declives das montanhas, as aldeias escondidas,
o vento que arrasta poeiras e esconde as fronteiras das cidades,
nela entramos por acaso, conforme a voz nos chama para

uma prece ou para uma refeição. Olhemos a fronteira de Netafim,
os nomes comovem-nos. Falar com Deus é estar ligado ao deserto,
preparar a morte, escolher os frutos, adormecer em Jerusalém.

(de O Puro e o Impuro, edições Quasi, 2003)

19.4.06

[500 anos depois - 2]

NELLY SACHS

VOZ DA TERRA SANTA


Ó MEUS FILHOS
A morte passou pelos vossos corações
Como por uma vinha -
Pintou Israel a vermelho em todas as paredes da Terra.

Para onde há-de ir a pequena santidade
Que ainda mora na minha areia?
Através dos canais da solidão
Falam as vozes dos mortos:

Deponde sobre o campo as armas da vingança
Pra que elas falem baixo -
Pois também o ferro e o trigo são irmãos
No seio da Terra -

Para onde há-de ir a pequena santidade
Que ainda mora na minha areia?

A criança no sono assassinada
Levanta-se; torce pra baixo a árvore dos milénios
E prende a estrela branca anelante
Que outrora se chamou Israel
Na sua coroa.

Reergue-te de novo, diz ela
Pra lá, onde lágrimas significam Eternidade.

(in Poemas de Nelly Sachs, tradução de Paulo Quintela, Portugália editora, 1967 - original de Coros Depois da Meia-Noite / Chöre Nach der Mitternacht, 1946)
[500 anos depois - 1]

SOU JOSÉ VOSSO IRMÃO

João XXIII recebeu, em audiência de 17 de Outubro, cerca de duzentos delegados judeus da United Jewish Appeal dos E. U. A., que se haviam deslocado a Roma. Acolheu-os de braços abertos e com uma citação bíblica: «Sou José, vosso irmão!»
Numa carta dirigida ao Superior Geral dos Franciscanos, o Papa escreveu, pensando nos judeus: É preciso lançar mão de todos os meios para superar mentalidades ultrapassadas, ideias preconcebidas e expressões pouco corteses.
Sabe-se que João XXIII mandou suprimir a qualificação pérfidos que se encontrava numa das orações de Sexta-Feira Santa, consagrado à conversão dos judeus.

(relatado por Henri Fesquet, in Fioretti do Bom Papa João, tradução de Maria Eugenia Varela Gomes, Livraria Morais editora, 1964 - negritos meus)

18.4.06

[para acrescentar às outras três versões]

DYLAN THOMAS

A MÃO QUE ASSINOU O PAPEL...


A mão que assinou o papel derrubou uma cidade;
Cinco dedos soberanos decidiram a sorte,
Duplicaram os mortos, dividindo um país;
Foram cinco reis a dar a um rei a morte.

A mão poderosa levou a um ombro caído
Quando as falanges dos dedos se crisparam;
Um bico de pato pôs fim ao crime
Que pôs fim àqueles que falaram.

A mão que assinou o tratado trouxe febre,
Fez crescer a fome, vieram gafanhotos;
Grande é a mão que determina
Com um garatujar, o número de mortos.

Os cinco reis contam os mortos mas não saram
Chagas que já endureceram; nem podem afagar.
A mão governa a dor como outra mão o céu;
Nas mãos não há lágrimas que chorar.

(tradução de Victor Palla in Poemas do Inglês, Ler editora, 1985)

17.4.06

ANA HATHERLY

A MATÉRIA DAS PALAVRAS


Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguês de luto em nossos actos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma perfeição
especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.

(de O Pavão Negro, Assírio & Alvim, 2003)

16.4.06

MARTIN SCHONGAUER


Noli me tangere, 1462-1465
têmpera sobre madeira
116 cm x 87 cm

Colmar, Unterlinden-Museum
ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA

NOVA MEDITAÇÃO PASCAL


Passo a passo subimos ao Calvário
(Na treva espessa é que se aspira à luz),
Mas o caminho nunca é solitário:
Há sempre quem ajude a suportar a cruz!

Há sempre uma mulher que nos enxuga o rosto
E que o piedoso pranto não sustém
Ao ver sangrar o filho à fúria exposto:
Há sempre alguém a quem chamamos Mãe!

Há sempre o açoite do ódio e da vingança
E o jogo no pó do interesse mesquinho.
Há sempre, num insulto, a ponta de uma lança
A ferir-nos de fel, mais que o cravo e o espinho!

Mas há sempre uma voz que nos pede perdão
E morre ao nosso lado com serena alegria.
Há sempre, meu Jesus, a Tua mão
E o milagre do terceiro dia!

(de Estado Estacionário, 1988)