[500 anos depois - 3]
FRANCISCO JOSÉ VIEGAS
Uma fronteira ao acaso
Lembras-te de Netafim, caro amigo? Contámos a história
de Deus ao longo da estrada que cruzava o Sinai, rente ao
deserto, à poeira, à luz da noite, ao medo do fim do dia -
o nosso êxodo é de palavras sinceras, de rituais repetidos
sem medo ou vergonha. A história do rabino era fantástica,
atravessando numa bicicleta voadora o céu de Eilat e as margens
do mar Vermelho. A noite colheu-nos ao volante do carro,
como um resumo da história de Deus. É esta a nossa sinagoga:
o deserto, os declives das montanhas, as aldeias escondidas,
o vento que arrasta poeiras e esconde as fronteiras das cidades,
nela entramos por acaso, conforme a voz nos chama para
uma prece ou para uma refeição. Olhemos a fronteira de Netafim,
os nomes comovem-nos. Falar com Deus é estar ligado ao deserto,
preparar a morte, escolher os frutos, adormecer em Jerusalém.
(de O Puro e o Impuro, edições Quasi, 2003)
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