8.8.09

EMANUEL FÉLIX

PALAVRA O AÇOITE


Todo o santo nevoeiro esta manhã de glória
pátria filho
um rugir absoluto
de botas um secreto
martelar de silêncio
filho
medo

Todo o santo silêncio este espanto este espesso
sangue suor e água e mar e mágoa
e o amor e o amor e o amor em reserva
o trigo inteiro e digo amor o dia
inteiro por ceifar

E toda a santa esperança este dia esta noite
este vago vagar de sulcos rodas rosas
rasas
a relva a alva
o alvo
corpo inteiro da esperança

Todo o santo nevoeiro esta pressa este instante
este loiro este negro este infante fantasma

(de A Palavra O Açoite, 1977)

7.8.09

IVONE CHINITA

POEMA TREMENDO


do tremendo poema que já fiz
ou antes do tremendo poema ficaram
gestos poucos diluídos
no ar pesado para respirar
como cinzenta era a ilha
e tremenda a solidão dos passos
deslocados sob os pés de
marinhante

a tristeza da criança
sentada ao meu lado
ocultando as nódoas da blusa

a roupa inevitável pendurada
nas cordas
a dor nas costas da mãe
lavando uma vida toda
lavando uma vida toda

mas tremenda, tremenda mesmo
é esta tarde parada
em que não temos coragem
de soprar no vento

(de Outra versão da casa, edições Base, 1980)
J. H. SANTOS BARROS

Para uma Arqueologia de ser Angrense


«A Prática é a Arte. Se desistis estais perdido». William Blake

Se quiséssemos usar uma figura de polarizadora linguagem do profissionalismo político mais em voga, poderíamos dizer que Angra é uma cidade que não tem dissidentes.
Os angrenses, aqueles que engrossaram as vagas da emigração açoriana, usam de um silêncio de catedral quando interpelados sobre a sua cidade de origem, seja para fins de inquérito étnico ou sócio-político ou em simples conversa de correr com o tempo. Há neste procedimento algo que se nega à decifração, por uma espécie de alquimia que opera em dois sentidos – a origem está em si, isto é, o angrense é a cidade; o texto da polis (primitiva evoluiu, por processos que remontam à cabala judaica, aos signos berberes e à exegese cristã filtrada pela filosofia do século V grego, para um texto do imaginário, geograficamente artocentista mas de efectiva comunicação sensual e afectiva entre os pólos: Corvo / Santa Maria; Europa/América; Mar de Sargaços/Mar Nostrum, etc. Atlântida remota ou do porvir? Lumen do quinto império do padre António Vieira e de Fernando Pessoa? Ilha de Vénus de Camões? A questão não reside aí, mas de certo são referências a reter e que Angra guarda das Portas Falsas à Memória.
Que isto possa ser destruído, arrasado? É duvidoso. O abalo sísmico visto como pulsão do magma oceânico duma natureza identificada com a unidade dos outros mundos perdidos, pode que seja um acto herético de Poesis. Mas quem negará, freudiano ou não, a ligação do instinto vital, sexual, ao instinto da morte, destrutivo? Gerar vida e consumi-la. Terríveis as consequências que todavia são uma pequenina parte do que podemos ver no texto de S. João, legível neste tempo pelos fragmentos que estão à vista: a poluição, os mísseis, as bombas de hidrogénio, etc.

*

E os passageiros de Angra? Os castelhanos foi o que se sabe, mas legaram-nos uma cidade e uma ilha muralhadas, impenetráveis. No tempo histórico, o coração do arquipélago, por empatia, encolheu-se e voltou a distender-se para trabalhar com mais rigor e, armado embora, com uma suavidade indescritível. Pode-se imaginar um Capitão Boid, um qualquer corsário com êxito na abordagem da cidade, sem o contracanto dos idílios freiráticos? Honestamente, não. Pense-se nessa Angra como que recoberta da Praça às Covas de pinheiros mansos do Monte Brasil. E na periferia, as árvores e os frutos: laranjas, corações-negros, morangos, etc.
Lichonstein fez-se angrense. Os Van der Hagen açorianizaram-se a partir de Angra.
A «Angra no último quartel do século XVI» foi projectada por Emanuel Félix para um tempo a-histórico. Isto é, só é possível compreendê-la já fora do século XX e muitos de nós não chegaremos lá. O poeta recuperou o passado que persiste e é o sopro do futuro que nele (por ele, poeta) se anuncia.
Os cautos, os calculistas, hábeis manejadores, seres perfeitamente computatoriais, não entenderão, dirão mesmo que isto «(o texto)» é da ordem do trâns-curso, do transeoceanismo aéreo ou submarino. Mais tolerantes, os cultos, dirão que é assim que se faz a liberdade, e os bravos do Mindelo já o sabiam. Mas não se trata de angelismo demoníaco ou da intemporalidade grata aos homens que se desejam deuses, as representações aqui descritas.

*

Angra mulher, poesia, religião, festa e tragédia. Uma autobiografia simbólica. Angra aprisionada pela história e da história das prisões (Afonso VI, Gungumhana, primeiros resistentes ao salazarismo). Angra da peste e da fome, da humidade que corrói os ossos e o trabalho. Do sol de Dezembro, do inesperado lago que é a sua baía em Agosto, da comunidade do justo com o seu senhor; Angra da paz e sossego e dos levantes! e esperas de gado bravo; dos ritos iniciáticos da maturação dos mitos endróginos ocultos e dos rituais públicos da missa das onze em S. Pedro e das sete na Sé. Angra da Lusitânia («aqui só já foi Portugal») e do Lusitânia '(«campeão dos campeões açorianos»). Angra para amar e detestar, seguindo a dualidade que a filosofia escolástica faz escorrer dos muros e dos musgos do seu seminário, dos seus templos. Há uma Angra para o gosto de cada um, para exaltar e dignificar a vida, para a ternura na solidão mesmo nas tardes de nada acontecer de jardim público e páteo da alfândega, nas procissões e coroações de impérios. Ternura que suaviza a solidão de alguns, poucos, humilhados; uma alegria rubra levantada nas festas populares, paradoxo em dique erguido sobre o isolamento – esse deserto' de água que se enxerga por aí fora. Desta Angra – a angra / âncora de cada um – nada caiu, e até os mortos hão-de ressuscitar segundo a fé comum.
A outra Angra, é quase só perceptível aos seus naturais e amigos. A que faz doer fundo. Refere a epistolografia dos dias de Janeiro, a dialéctica da «tragédia da rotina» dos abrigos precários, das necessidades antigas postas mais a nu, expectativas tão intensas carregadas de anos e anos de trabalho horizontalmente reduzidos a pó e escombros frente às poucas casas mais sólidas não destruídas frente aos egoísmos de aquário, frente a certa chantagem no contrabando da esperança. Tudo tão pobremente ilhéu! Mas seria realmente tudo, estaria o quadro completo? – Não, Do marmoto que não houve, uma vaga enorme de entusiasmo fraterno e solidário houve a unir os angrenses – falou-se por esses dias de experimentação concreta dum outro mundo e seria errado ver-se nisso meras refracções do pesadelo, da hipnose do terror, do sonambulismo.
Seria esse o mundo visionado pelos poetas quando faziam a lei? Era esse o mundo que Blake «viu» e dele nos transmitiu que Cristo, os apóstolos e os discípulos eram todos artistas mas que a Arte necessitava de prática permanente? Então era possível Angra mover-se do fundo dos séculos?
O texto remove-se.

(de S. Mateus, outros lugares e nomes, editorial Vega, 1981 – o chão da palavra)

6.8.09

JOSÉ ÁLVARO AFONSO

O sol das férias desfaz sem remédio
Os ramos da estreia deixados na gaveta
No labirinto das hipóteses vãs
Insistem dolentes melodias roucas
Presentes por abrir abandonados nus

Já tardia a sombra desce sobre a nuca
Repete para dentro o que estava longe

Vislumbrada a fugitiva ausência
– Sede de mel a mel semelhante
Prisão de asas em desalinho –
Vai descontar à perfeição o inconsútil
Tolerar gladíolos e o primeiro frio

(de Furtiva a Luz, edições Salamandra, 1999 – colecção Garajau)

5.8.09

ANTÓNIO DACOSTA

VARANDA da minha infância
Cidade feliz
De teus ócios merecidos
Chegou o fim amargo
Do meu último olhar

Vejo enfim as calmas areias quentes
Os fetos das fontes que o tempo secou
O fundo poço que sou e é velho e é triste
Nada muda o destino deste parado barco
O mar dorme em paz e sossego
A terra mostra ao sol os seios preguiçosos
As mulheres espreitam arrepiadas às janelas
Do caminho sobem ao céu súbitas nuvens de poeira

Tudo é divino à luz dourada dourado
Só eu sou levado de mim e me perco

(in A Cal dos Muros, selecção e apresentação de Bernardo Pinto de Almeida, Assírio & Alvim, 1994 – Peninsulares / Literatura)
ANTÓNIO DACOSTA





ÁLAMO OLIVEIRA

ilha


a ilha ao fundo__funda saudade
que emerge do horizonte.
azulíneos__os gestos do pincel
sedimentam as águas
de míticas inquietações.

ninguém sabe que peixes
habitam no mar.
se há nevoeiro dom sebastião não vem.
o céu__único infinito que passa
pela janela da casa de janville.

no peitoril__os calos dos cotovelos do silêncio.

(de antónio porta-te como uma flor, edições Salamandra, 1998 - o quadro acima acompanha o poema, nesta edição)

4.8.09

MARQUESA DE ALORNA


QUANDO ME PENHORARAM INJUSTAMENTE TODOS OS MEUS BENS


À Fortuna


Fortuna, que me persegues,
Pequeno triunfo tens:
Eu desejo só vontades,
Tu disputas-me vinténs.
Basta-me o que me deixares,
Quando tudo me levares.

Basta-me esta alma que tenho,
Constante como os penedos;
Bastam-me as águas das fontes,
E a sombra dos arvoredos;
Ponho-me ao fresco no Estio,
E aquento-me, andando ao frio.

Basta-me o Sol, que não podes
Apagar, e à noite a Lua.
Se me tirares a casa,
Irei dormir para a rua.
Sopa, não me dá cuidado,
Tem muitas plantas o prado.

Se o teu rigor se estendesse
A tirar-me o meu tinteiro,
Escreveria nos troncos,
Com um prego, este letreiro:
«Vim ao mundo sem camisa,
Ninguém, morrendo, a precisa.»

(in Poesias, selecção, prefácio e notas do Prof. Hernâni Cidade, 2ª ed.: livraria Sá da Costa editora, 1960)




Parece que os comerciantes de livros, jornais e revistas apostam é na bandidagem.
Três casos flagrantes, cujos alvos não se calaram:

- Pedro Vieira (o Irmão Lúcia);

- Paulo Nozolino (não se assustem com o aviso do blogger e não deixem de ler até ao fim);

- Fernando Aguiar.


Como diz o José Mário Silva, a propósito do primeiro caso:

"Roubo descarado. Roubo sem vergonha. Roubo escandaloso. (...) o caso não se resolve apenas com o repúdio (espero que generalizado) da blogosfera e o eventual boicote dos leitores. Até pelos precedentes que abre, a infracção deve ser punida exemplarmente."


(ao alto, as provas dos delitos)

3.8.09

M. S. LOURENÇO


CAMILO PESSANHA
SOBE OS DEGRAUS DO PARNASO

I

Antes de tudo a Música.
Onde prefiro o tempo ímpar,
Mais vasto & mais solúvel no ar,
Sem nada nele que pese ou pose.
Passo por isso ao peito
O som das sílabas, na grande oitava.
Nada mais sublime que a frase da chuva,
Onde o Indeciso soa com o Preciso.


II

Pelos silêncios amigos da lua,
Elevada a espuma, a névoa
Com pontas de sol & diamante
Espalha os anéis do sal, até que a Poente
Trazem, em porte circular, as nuvens
Agora lentas, ao subir para a bruma do cais,
Para a espuma da areia,
O sol iluminado pela noite.


III

No tom calmo através do fumo,
Na onda lenta que o fim do dia solta,
A tarde vibra violeta & eu sigo
O grave & o agudo da chuva.
Seis sentidos para ascender
Ao encontro das harmonias da noite.
Só a ressonância delas junta o sonho
Ao sino & a flauta ao gongo.


IV

Uma jarra de dálias sobre a mesa
Repousa no seu perfume de sândalo,
Em tempos de um alaúde
Ou de uma flauta.
Uma cabeça de ouro
Incensa a página que reflecte,
Iluminada, o texto de trevas,
Em tempos de vésperas ou completas.


V

Agnosco veteris
Vestigia flammae.
Quase sinestésico o vitral
Que arranca a harpa ao anjo,
Em curso no seu voo da noite.
Uma melodia plagal
Equilibra o alto sobre um acorde
Composto de três silêncios.


VI

Fujo da palavra sem timbre
Da expressão sem tom,
Da língua turva, do enunciado impuro,
Onde as arcadas do violoncelo choram.
Exaustos os rapsódicos rios de leones,
Fundo o murmúrio fluvial da estrofe,
Ouvindo interiormente,
Com as pálpebras cerradas.


VII

No céu as estrelas movem-se,
Uma a uma, até que soam
De cristal as cadências da noite.
A chuva canta ao meio, lenta & longa.
A mim só me resta,
Numa polifonia que tudo contém,
Puro, um deus que cresça,
A aproximar-se, por degraus, da Morte.


VIII

Musica et nunc et semper.
O meu poema é um enigma.
Ouve-se dele sair a alma que sobe
Para outros céus, para novos amores.
Seja o meu poema a liturgia cantada,
No ópio da manhã crispada,
Em que o vento verga a orquídea do Tibete.
& o som do vento é literatura.


(de Nada Brahma, Assírio & Alvim, 1991 – Peninsulares / Literatura)

2.8.09

[morreu ontem – ver notícia aqui e aqui]

M. S. LOURENÇO

III


Vejo que não queres a equação de uma linha,
Os pontos compostos todos à sua volta,
Uma regra para dispor em cada caso
A ordenar por dentro o conjunto inteiro.
Não queres, dizes, a máquina funcional
Que calcula a posição de cada ponto –
Deixa-los expandir ao acaso, uma nebulosa
Que cresce sem limites num impulso variável.

Que linha é essa no entanto quando olhas
Sem ver nas partes um eixo dominante?
Em breve o horizonte esgota-se e o que fora
Uma explosão do sol é uma área trivial.
Extinto o cânon não distingues mais
Uma barra firme dum traço instável.
Por fim vibras com o intervalo subtil,
Voltas do nó orgânico à fuga poligonal.

Não se tocam as linhas de um compasso,
Deixam-se suspensas numa presença imóvel,
Perpendiculares ao fundo a bater o tempo,
Um guia silencioso no texto medieval.
Ficam a raiz do desenho, o arame da frase
Como um esqueleto de metro no meio do verso livre:
Soam no osso a respiração do bloco,
Um andaime dobrado numa fibra contínua.

Não há volumes de uma só faceta
Em movimento paralelo ao mesmo plano.
Não medimos só ponto contra ponto
Nas imagens discretas da mesma linha,
Mas também o acordo da figura vertical
Em que o bloco ressalta integrável.
A treva desce aos vapores do fundo:
A face sua oblíqua através do espelho.

(de Arte Combinatória, Moraes editores, 1971 – Círculo de Poesia)
[faria hoje 80 anos]