6.10.04

[a propósito e em complemento da evocação que faço na Terra da Alegria, deixo aqui um soneto de um homem lúcido, generoso e bom]

Padre ABEL VARZIM

Que fazes tu aí, oh! Cristo antigo,
Pregado nessa Cruz, eternamente?
Liberta a tua mão omnipotente,
Desprega esses teus pés... e vem comigo!

Não sabes que, sem Ti, nada consigo?
Não vês que fazes falta a tanta gente?
Oh! vem de novo como antigamente,
Viver connosco e nós contigo!

Não vens? Não queres ouvir a humilde prece
Num Mundo que, sem Ti, desaparece,
Vencido pela morte e pela dor?

Não vens? Não pode a Cruz ficar sozinha?
Pois bem: Permite, então, que seja minha!
Eu fico nela... e desce Tu, Senhor!

(publicado pela primeira vez por Domingos Rodrigues em Abel Varzim - Apóstolo Português da Justiça Social, Rei dos Livros, 1990)

[e isto anda tudo ligado: o Miguel desabafa sobre a necessidade do sobressalto para ultrapassar a dificuldade da oração quando o Tim constata que "o Amor é talvez a chave que desequilibra a favor do Bem os pratos da balança do acaso", frase que remete para o que o Lutz nos dirá na próxima 2ª feira]

5.10.04

RAUL BRANDÃO

[excerto de O MEU DIÁRIO - 9 de Outubro de 1910]

Oh meu Deus; nestas ocasiões é que eu queria ver por dentro estes homens lívidos e com um sorriso estampado na cara, que sobem e descem as escadas dos ministérios, para aderirem à República! É este e aquele, os que estão ameaçados de perderem os seus lugares, as altas situações, o poder. Os tipos não importam - o que importa é o fantasma que transparece atrás da figura; o que importa é o monólogo interior, as verdadeiras palavras que não se pronunciam, o debate que não tem fim, o que nestas ocasiões ruge lá dentro sem cessar. Escutá-los a todos! possuir o Dom mágico de ouvir através das paredes e dos corpos!... Toda a noite, toda a noite de Cinco de Outubro quantos perguntaram ansiosos: - Quem vai vencer? onde é o meu lugar?... Bem me importam a mim as tragédias e as mortes!... Interesses, ambição, medo, tantos fantasmas que nem eu supunha existir e que levantam a cabeça!...
Não há nada que chegue a estes momentos históricos em que o fundo dos fundos se agita e remexe, para cada um se avaliar e saber o que vale uma alma...
E o desfile segue - o desfile dos que sobem as escadarias dos ministérios, dos que descem as escadarias dos ministérios, uns já com o olhar de donos, mas vacilantes ainda, sem poderem acreditar na realidade, outros com um sorriso estampado que lhes dói. Estamos todos lívidos por fora e por dentro...

(incluído no "Tomo II" de Memórias - edição de José Carlos Seabra Pereira, Relógio d'Água, 1999 - Obras Clássicas da Literatura Portuguesa / Séc. XX)