18.1.14

CHARLIE CHAPLIN, citando HART CRANE


Por intermédio de Waldo [Frank] conheci Hart Crane e jantámos os três muitas vezes no pequeno apartamento que Waldo tinha na Village, onde discutíamos até à hora do primeiro almoço do dia seguinte. Eram discussões apaixonantes, em que nos esforçávamos por alcançar a definição subtil dos nossos pensamentos.
Hart Crane vivia na maior pobreza. O pai, fabricante rebuçados milionário, queria que o filho entrasse para o negócio e tentava desencorajá-lo da poesia, cortando-lhe os víveres. Não tenho nem o ouvido nem o gosto afeitos à poesia moderna, mas enquanto escrevia este livro li The Bridge (A Ponte) de Hart Crane, obra à qual confiou todas as suas emoções, livro estranho e dramático, cheio de angústia lancinante e de mordaz sentido da imagem, para mim de agudeza um tanto excessiva. Mas talvez que em Hart Crane semelhante excesso fosse inato. No entanto, era dotado de grande afabilidade.
Discutimos o intento da poesia. Eu disse que a poesia era uma carta de amor dirigida ao mundo. «Um mundo muito pequeno», respondeu Hart com tristeza. Considerava que a minha obra se mantinha na tradição das comédias gregas. Confessei-lhe que tentara ler uma tradução inglesa de Aristófanes, mas não conseguira nunca lê-la até ao fim.
Hart acabou por receber uma bolsa de estudos da Fundação Guggenheim, mas tarde de mais. Ao fim de anos de pobreza e abandono, entregava-se à bebida e à libertinagem e, quando regressava num barco de passageiros do México para os Estados Unidos, atirou-se ao mar. 
Uns anos antes de se suicidar, mandou-me um livro de poemas curtos intitulado White Buildings (Edifícios Brancos), publicado por Boni Liveright. Na página de guarda, escreveu: «A Charlie Chaplin, lembrança do Kid, de Hart Crane. 20 de Janeiro de 1928.» Um dos poemas intitulava-se Chaplinesque: 

Vamo-nos adaptando humildemente,
Contentes dessas ocasionais consolações
Como as que o vento deposita
Em fundas, excessivas algibeiras.

Ainda podemos amar o mundo, os que encontramos
Um gatinho esfaimado à porta, e sabemos
Onde abrigá-lo do furor da rua
Numa caminha tépida de penas.

Esquivar-nos-emos, e até ao derradeiro esgar
Adiaremos a sentença do polegar inevitável
Que lentamente aponta para nós a falange enrugada,
Encarando os olhares vesgos com que inocência
E que surpresa!

E no entanto essas quedas subtis não são mais falsas
Que os molinetes duma bengalinha;
Os nossos funerais não são, no fundo, um empreendimento.
Podemos fugir-vos, e de tudo, mas não do coração:
Que havemos de fazer, se o coração palpita?

O jogo impõe sorrisos afectados,
Mas nós vimos a lua nas vielas desertas
Desencadear bátegas de gargalhadas dum balde do lixo vazio,
E através dessa algazarra ouvimos
Um gatinho a miar na solidão.



(in Autobiografia, tradução de António Lopes Ribeiro, Ulisseia, 1965)

17.1.14

JOSÉ TERRA


Seremos deuses, enfim, deuses humildes,
generosos, lúcidos e humanos.
Onde acaso tocar o nosso pé
nascerão fontes, pássaros e cânticos.
Dormiremos na fronte das montanhas
com as feras, as aves e as serpentes.
De manhã, na curva do horizonte
raiará nosso filho em vez do sol
e à porfia com rios e colinas
correremos às praias e ao oceano.
As nossas mãos conduzirão os ventos
de todos os quadrantes. E as estrelas
virão dormir no nosso coração.



(de Para o Poema da Criação, 1953)

16.1.14


RUY BELO, entrevistado por MARIA TERESA HORTA


— Acha que a poesia não pode, ou melhor, não deve ser ambígua, difícil, mas sim clara, fácil?

A poesia é por natureza difícil. Como o futebol. Desculpe a alusão. Mas não é descabida. Porque é que eu leio muito jornais desportivos? Porque os nossos maiores jornalistas são Alfredo Farinha, Carlos Pinhão, Aurélio Márcio ... Este último fez uma reportagem notável no Popular sobre o último Campeonato do Mundo de futebol. A anotar muito bem o concreto, o pormenor, como o melhor Hemingway. E Fernando Pessoa nunca será conhecido por tanta gente como Eusébio. E acho bem. O êxito.


(in «A Capital», de 18 de Setembro de 1968, e reproduzido em Na senda da Poesia, 1969)