CHARLIE CHAPLIN, citando HART CRANE
Vamo-nos adaptando humildemente,
Contentes dessas ocasionais consolações
Como as que o vento deposita
Em fundas, excessivas algibeiras.
Ainda podemos amar o mundo, os que encontramos
Um gatinho esfaimado à porta, e sabemos
Onde abrigá-lo do furor da rua
Numa caminha tépida de penas.
Esquivar-nos-emos, e até ao derradeiro esgar
Adiaremos a sentença do polegar inevitável
Que lentamente aponta para nós a falange enrugada,
Encarando os olhares vesgos com que inocência
E que surpresa!
E no entanto essas quedas subtis não são mais falsas
Que os molinetes duma bengalinha;
Os nossos funerais não são, no fundo, um empreendimento.
Podemos fugir-vos, e de tudo, mas não do coração:
Que havemos de fazer, se o coração palpita?
O jogo impõe sorrisos afectados,
Mas nós vimos a lua nas vielas desertas
Desencadear bátegas de gargalhadas dum balde do lixo vazio,
E através dessa algazarra ouvimos
Um gatinho a miar na solidão.
(in Autobiografia, tradução de António Lopes Ribeiro, Ulisseia, 1965)
Por intermédio de Waldo [Frank] conheci Hart Crane e jantámos os três
muitas vezes no pequeno apartamento que Waldo tinha na Village, onde
discutíamos até à hora do primeiro almoço do dia seguinte. Eram
discussões apaixonantes, em que nos esforçávamos por alcançar a
definição subtil dos nossos pensamentos.
Hart Crane vivia na maior pobreza. O pai, fabricante rebuçados
milionário, queria que o filho entrasse para o negócio e tentava
desencorajá-lo da poesia, cortando-lhe os víveres. Não tenho nem o
ouvido nem o gosto afeitos à poesia moderna, mas enquanto escrevia este
livro li The Bridge (A Ponte) de Hart Crane, obra à qual confiou todas
as suas emoções, livro estranho e dramático, cheio de angústia
lancinante e de mordaz sentido da imagem, para mim de agudeza um tanto
excessiva. Mas talvez que em Hart Crane semelhante excesso fosse inato.
No entanto, era dotado de grande afabilidade.
Discutimos o
intento da poesia. Eu disse que a poesia era uma carta de amor dirigida
ao mundo. «Um mundo muito pequeno», respondeu Hart com tristeza.
Considerava que a minha obra se mantinha na tradição das comédias
gregas. Confessei-lhe que tentara ler uma tradução inglesa de
Aristófanes, mas não conseguira nunca lê-la até ao fim.
Hart acabou
por receber uma bolsa de estudos da Fundação Guggenheim, mas tarde de
mais. Ao fim de anos de pobreza e abandono, entregava-se à bebida e à
libertinagem e, quando regressava num barco de passageiros do México
para os Estados Unidos, atirou-se ao mar.
Uns anos antes de se
suicidar, mandou-me um livro de poemas curtos intitulado White
Buildings (Edifícios Brancos), publicado por Boni Liveright. Na página
de guarda, escreveu: «A Charlie Chaplin, lembrança do Kid, de Hart
Crane. 20 de Janeiro de 1928.» Um dos poemas intitulava-se Chaplinesque:
Vamo-nos adaptando humildemente,
Contentes dessas ocasionais consolações
Como as que o vento deposita
Em fundas, excessivas algibeiras.
Ainda podemos amar o mundo, os que encontramos
Um gatinho esfaimado à porta, e sabemos
Onde abrigá-lo do furor da rua
Numa caminha tépida de penas.
Esquivar-nos-emos, e até ao derradeiro esgar
Adiaremos a sentença do polegar inevitável
Que lentamente aponta para nós a falange enrugada,
Encarando os olhares vesgos com que inocência
E que surpresa!
E no entanto essas quedas subtis não são mais falsas
Que os molinetes duma bengalinha;
Os nossos funerais não são, no fundo, um empreendimento.
Podemos fugir-vos, e de tudo, mas não do coração:
Que havemos de fazer, se o coração palpita?
O jogo impõe sorrisos afectados,
Mas nós vimos a lua nas vielas desertas
Desencadear bátegas de gargalhadas dum balde do lixo vazio,
E através dessa algazarra ouvimos
Um gatinho a miar na solidão.
(in Autobiografia, tradução de António Lopes Ribeiro, Ulisseia, 1965)
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