29.10.11


JOÃO CABRAL DE MELO NETO


«THE COUNTRY OF THE HOUYHNHNMS»
(outra composição)

Para falar dos Yahoos, se necessita
que as palavras funcionem de pedra:
se pronunciadas, que se pronunciem
com a bôca para pronunciar pedras;
se escritas, se escrevam em duro
na página dura de um muro de pedra;
e mais que pronunciadas ou escritas,
que se atirem, como se atiram pedras.
Para falar dos Yahoos, se necessita
que as palavras se rearmem de gume,
como numa sátira; ou como na ironia,
se armem ambiguamente de dois gumes;
e que a frase se arme do perfurante
que têm no Pajeú as facas-de-ponta:
faca sem dois gumes e contudo ambígua,
por não ver onde nela não é ponta.


2.
Ou para quando falarem dos Yahoos:
não querer ouvir quando falar, pelo menos;
ou ouvir, mas engatilhando o sorriso,
para dispará-lo, a qualquer momento.
Aviar e ativar, debaixo do silêncio,
o cacto que dorme em qualquer não;
ativar no silêncio os cem espinhos
com que pode despertar o cacto não.


(de A Educação pela Pedra, 1965)


JONATHAN SWIFT

[…]
O cavalo-chefe ordenou a um garrano alazão, um dos seus criados, que desamarrasse o maior daqueles animais e o levasse para o pátio. A besta e eu fomos colocados frente a frente e as nossas caras cuidadosamente comparadas, tanto pelo chefe como pelo criado, enquanto repetiam várias vezes a palavra «Yahoo». São indescritíveis o horror e o espanto que senti ao reconhecer naquele abominável animal um perfeito homem. A sua cara era, de facto, achatada e larga, o nariz baixo, os lábios grossos e a boca desmedida. Estas características são, porém, comuns a todos os nativos das nações mais atrasadas, em que logo de pequeninos os traços da cara são deformados, quer por andarem de rojo pelo chão, quer por irem esborrachando a cara de encontro às costas da mãe, quando esta aí os leva. As patas dianteiras do yahoo distinguiam-se das minhas mãos apenas pelo comprimento das unhas, a aspereza e tom acastanhado das palmas e os pêlos nas costas. O mesmo valia para os nossos pés, o que os cavalos não puderam apreciar por causa do meu calçado. Essa mesma semelhança estendia-se a todo o resto do corpo, com excepção do adorno, capilar e da cor, como já descrevi.
O que mais embaraçava os dois cavalos era encontrar o meu corpo tão diferente do do yahoo, o que eu devia às minhas roupas, que eles, por desconhecimento, tomavam como parte integrante do meu corpo. O garrano alazão ofereceu-me uma raiz, que ele segurava (como lhes era próprio e eu descreverei na devida ocasião) entre o casco e a quartela. Peguei-lhe e, depois de a cheirar, devolvi-lha tão cortesmente quanto me foi possível. Trouxe, em seguida, do estábulo do yahoo um bocado de carne de burro, que eu recusei com repugnância, tão mal cheirava. Atirou-o, então, para o yahoo, que lhe saltou em cima e imediatamente o devorou. Ofereceu-me depois um molho de feno e um punhado de aveia, mas abanei com a cabeça, mostrando que nada daquilo me servia como alimento. Nessa altura convenci-me que morreria de fome, caso não viesse a encontrar alguém da minha espécie. Quanto àqueles imundos yahoos, não podia contar com eles, e, apesar de nutrir, como poucos na altura, grande amor pela humanidade, confesso nunca ter visto ser sensitivo mais detestável em todos os aspectos; e quanto mais os ia conhecendo, durante a minha permanência naquele país, mais repugnantes me pareciam. Adivinhando, pelo meu comportamento, tal aversão, o cavalo-chefe mandou recolher o yahoo. Levou, então, uma das suas mãos à boca, num movimento perfeitamente natural e executado com tal facilidade que me surpreendeu sobremaneira, com o que, juntamente com outros sinais, me dava a entender que não sabia o que havia eu de comer. Era-me, porém, impossível responder-lhe de maneira a fazer-me compreender; e, mesmo que me compreendesse, não via onde ele iria encontrar comida para mim. Passou nessa altura por nós uma vaca, e, apontando para ela, fiz menção de a ir ordenhar, pelo que ele me conduziu de novo para dentro de casa e, ordenando a uma égua que abrisse um quarto, me pôs perante uma abundante provisão de leite, contido em vasilhas de barro e madeira, numa ordem e asseio exemplares. A égua deu-me a beber uma tigela cheia, que eu bebi com gosto, sentindo um conforto imediato.
[…]


(excerto de As Viagens de Gulliver, tradução de Maria Francisca Ferreira de Lima, Biblioteca Visão, 2000)

26.10.11

CESAR VALLEJO


LXXVII

Graniza tanto, como para que eu recorde
e aumente as pérolas
que recolhi mesmo do focinho
de cada tempestade.

Esta chuva não se vai secar.
A não ser que eu pudesse
cair agora para ela, ou que me enterrassem
molhado na água
que jorrasse de todos os fogos.

Até onde me apanhará esta chuva?
Receio ficar com algum flanco seco;
temo que ela se afaste, sem me ter provado
nas secas de incríveis cordas vocais,
por onde,
para dar harmonia,
há sempre que subir, nunca descer!
Porventura não subimos para baixo?

Mesmo na praia sem mar, oh chuva, canta!


(in Antologia, selecção, tradução e prólogo de José Bento, Limiar, 1981 – Os Olhos e a Memória / original de Trilce, 1922)

25.10.11


RABINADRANATH TAGORE


O CAMINHANTE

Não me perguntes
O que é salvação
Ou onde a encontrar,
Não sou investigador, mas apenas poeta...
Vivo agarrado a esta terra.
Perante mim corre o rio da vida...
Levando na sua corrente
Luz e sombra, bem e mal,
Ganhos e perdas, lágrimas e risos,
Coisas que se entrelaçam
E se esquecem!
Sobre as suas águas
A manhã chega em profundos matizes,
O ocaso estende o seu véu carmesim,
E os raios lunares caem como o suave tacto de uma mãe.
Na noite escura
As estrelas elevam as suas orações;
Sobre as suas ondas
A madhuri oferece os seus dons,
E as aves soltam os seus cantos.
Quando ao ritmo das ondas
Silencioso dança o meu coração
Então nesse ritmo
Estão os meus limites e a minha liberdade.
Não desejo conservar nada
Nem apegar-me a nada.
Desatando os nós da união e da separação,
Quero flutuar com o Todo
Içando as minhas velas ao vento que paira.

Oh, grande Caminhante!
Para ti abrem-se os dez caminhos
Nos confins da terra,
E não tens templo, nem céu,
Nem limite final.
A cada passo tocas o chão sagrado.
Caminhando a teu lado, oh, Incansável!
Encontro a salvação
No tesouro do caminho.
Em luz e sombra,
Nas páginas sempre novas da criação,
Em cada novo instante de dissolução
Ouve-se o ritmo das tuas danças e canções.


(in Poesia, tradução de José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, 2004 – documenta poetica

24.10.11

LUIZ RUFFATO


À mesa tomam assento os eleitos,
alvas toalhas, asseada comida.
Bebem, conversam, enfastiam-se.
Ao relento, observamos, além
da janela. Sendas inúmeras
de mãos dadas percorremos,
vasta solidão. às nossas costas,
quanta ruína! Putrefazem-se
os mortos sob os monturos,
faz fortuna a peste. E a nós
nos foi dado os sinais aguardar.


(de As Máscaras Singulares, Boitempo editorial, 2002)