29.2.08

[outros melros L]

RUI MANUEL AMARAL

De um momento para o outro


Os melros nem sempre foram os pássaros tímidos e esquivos que conhecemos hoje. Houve um tempo em que os melros eram brancos e, em alguns casos, semelhantes a peixinhos dourados. E cantavam maravilhosamente nas tardes sombrias de Inverno e escondiam-se nas profundezas húmidas dos jardins, e comiam minhocas também. Mas depois, de um momento para o outro, tudo mudou.

(daqui)

28.2.08

RUBEN A.

SONHO DE IMAGINAÇÃO
(excerto)

(...)
Talvez a realidade possa ser apreendida na forma estranha da arte, mas eu, fincado em espaços divinos, lembro-me destas palavras: Floresta – Dália – Medusa – Silvalde – Maresia – Saudade – Sonho e cheiro o mar na onda da praia na concha da espuma quando também me lembro do cheiro misteriosos em castanhos efeitos a sair da terra molhada. E... vejo o céu na nuvem passeante adormecida na cor sem forma de adeus. O ritmo de palavra é como se pode ver uma expressão musical – quanto mais afinado está o ritmo harmónico mais sensível aparece o estado de alma dado em pormenor pelo som silábico. Os meus estudos imaginativos têm-me levado a estas novas possibilidades onde a alma consegue definir-se estaticamente, o verbo é a criação e o ritmo é a necessidade de agitação para o homem – As palavras são a essência da vibração como folhas de árvore são necessidades de vento. – Toda a religiosidade da natureza é dada pela interpretação ritmada do verbo – o verbo divino nada mais é do que a possibilidade vocálica de Deus!
Que pena não ser do senso comum. A resposta seria fácil, triunfante e política. – Quem cantasse melhor seria o papa desta nova interpretação evangélica e sacerdotes recrutar-se-iam dos grupos corais e folclóricos quer eles se destinassem às cidades ou aos campos, vilas, aldeias, lugarejos. A cantiga de Schubert – Deus na natureza – dava o elemento de comunhão espiritual onde a eternidade era apreendida em momentos de êxtase vociferante. Voilá, mon Vieux.
Este caso, sem ser uma necessidade patológica de análise é o exemplo típico do homem que pensa e que sente mas que ao mesmo tempo nada consegue fazer de útil e positivo porque é um revoltado.
(...)

(de Páginas (I), 1949)

27.2.08

[de como um leitor acha não se haver desencontrado com a memória deste poeta #9]

JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES

«Motivos alheios à sua vontade»

Foram estas cinco, as últimas palavras que escreveu. Nelas interrompeu Ruy Belo o currículo que repetia a pretensão de concorrer a um posto da Faculdade de Letras de Lisboa que vira anunciado num jornal. Mas essas ocasionais palavras atingidas pela despedida absoluta, figuravam o inquietante brazão daquilo em que se haviam tornado os seus últimos anos. Um homem obstinadamente retirado das ribaltas, submetido a uma profissão inadequada, preso ao reduto de um corpo demasiado pesado para a mobilidade da sua mente.
A morte de um poeta torna-se, muitas vezes, um alto momento exemplar. Ela evidencia todas as taras da organização nacional e põe a nu os critérios culturais de um povo. Tudo aquilo que não aconteceu a Ruy Belo mostra os mecanismos da merda em que nos fazem chafurdar.

(início de um artigo sobre Ruy Belo, in Os dois crepúsculos – sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, A Regra do Jogo, 1981)
[de como um leitor acha não se haver desencontrado com a memória deste poeta #8]

RUY BELO

COMO QUEM ESCREVE COM SENTIMENTOS


Estou sujeito ao tempo sou este momento
perguntam-me quem fui e permaneço mudo
o tempo poisa-me nos ombros em relento
partiu no vento essa mulher e perdi tudo
Já não virá ninguém por muito que vier
em vão esperei a rosa da minha roseira
quando um pássaro sai dos olhos da mulher
é porque ela é de longe e não da nossa beira

Resta-me um sonho desconexo e desconforme
Na haste da camélia que o vento quebrou
jamais a vida branca como ela dorme
Eu era essa camélia e nunca mais o sou

A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida

O mundo para além dessa mulher sobrava
tudo vida vulgar tumultuária e cega
o brilho do olhar equilibrava a chuva
nas suas costas hoje toda a luz se apaga

Mulher que um golpe de ar me pôde arrebatar
enfim não existia ou só ela existia
Asas que ela tivesse deixou-as queimar
e tê-la-á levado estranha ventania

Daqueles traços fisionómicos de pedra
não quero já ouvir a voz que às vezes vem
na calma destacada por um cão que ladra
Não há ninguém perto de mim sinto-me bem

Cada casa que roço é escura como um poço
se sou alguma coisa sou-o sem saber
sossego solitário sem mistério isso
talvez tivesse sido o que sempre quis ser

As flores vinham nela e era primavera
mas tanto a nomeei e tanto repeti
erros numa estratégia imprópria para ela
tamanho amor expus que cedo a consumi

A noite quando ao fim descer decerto há-de
ser certa solução. Foi há muito a infância
Ao tempo o que tu tens tu bem o sabes cede
estendo as mãos talvez te fique a inocência
A vida é uma coisa a que me habituei
adeus susto e absurdo e sobressalto e espanto
A infância é uma insignificância eu sei
e apenas por a ter perdido a amamos tanto

Estou sozinho e então converso com a noite
das palavras que nos subjugam nos submetem
As coisas passam e em vez delas é aceite
o nosso sistema de signos onde as metem

Esta minha existência assim crepuscular
devida àquela que é rastos destroços restos
acusa hoje alguma intriga consular
de quem não tem cabeça a comandar os gestos

Foi uma rosa rubra a autora desta obra
aberta e arrogante grácil flor do instante
que triunfante não há coisa que não abra
para ferir quem a viu e morrer de repente

E noite sou e sonho e dor e desespero
mero ser sórdido e ardido e encardido
mas já não tarda a abrir-se na manhã que espero
um arco com vitrais aos vendavais vedado

E embora a minha fome tenha o nome dela
e da água bebida na face passada
não peço nada à vida que a vida era ela
e que sei eu da vida sei menos que nada

(de Toda a Terra, 1976)
[de como um leitor acha não se haver desencontrado com a memória deste poeta #7]

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

R. B.


Escrevo-te cartas longas em longas tardes de esplanada
E repito constantemente coisas datas e palavras
Nas tuas praias e nos teus livros respiro os poemas
Como se fosse possível eu compreender tudo

Escrevo-te cartas que não chego nunca a pôr no correio
Não sei a tua actual direcção nem saberei
Se mesmo tendo direcção gostarias de as receber
Ou se a leitura te poderia provocar alguma alegria

Escrevo-te cartas e demoro-me com medo na tarde
Quando o céu se transforma numa nuvem cinzenta
Que se abre como se fosse a boca de alguém
À procura das palavras soletradas pela morte

(de Iniciais, Moraes editores, 1981 – Círculo de Poesia)
[de como um leitor acha não se haver desencontrado com a memória deste poeta #6]

RUY BELO

Ao escrever poesia, nunca me deixei levar por circunstâncias acidentais. Mas, menos paradoxalmente do que parece, circunstâncias acidentais explicam em parte e de certo modo essa poesia: a minha educação católica e mesmo mística, a reorganização da minha vida já perto dos trinta anos, a minha crise actual. Isto para só falar de mim. Mas, embora sem isso constituir um programa, tenho reagido às injustiças que vejo à minha volta e, como a poesia é por natureza revolucionária – renovação da sensibilidade, da linguagem –, não é de estranhar que por vezes sublinhe temas ou motivos participantes. A realidade imediata não se absorve, porém, de tal maneira, que não me continue a preocupar por exemplo o sentido da vida. Já em Aquele grande rio Eufrates havia linhas de ruptura, mas todo esse livro foi escrito num clima a que não tenho mais acesso. Boca bilingue é duplamente um livro de crise: nos temas e nas formas. E, em alguns poemas que posteriormente escrevi, soltei tais apelos que só me admira que certos profissionais da salus animi ainda não tenham tentado lançar-me uma mão.

(excerto de Entrevista 2, in Na senda da poesia, 1969 – original publicado em 1968, no jornal Notícias da Covilhã)
[de como um leitor acha não se haver desencontrado com a memória deste poeta #5]

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

Para N.G., R.B., L.N.J., C. DE O., L.M.N.
e os outros que já viveram

Tantos poetas morreram, em minha vida,
antes de mim, não só no sangue ou só na carne,
mas na portuguesa língua.
Deles fica a obra que fizeram.
Todavia vocábulos, para sempre
insonoros, ou no futuro incriados,
demonstram que os poetas todos
morrem sempre mais na língua.

(de Cenas Vivas, 2000)
[de como um leitor acha não se haver desencontrado com a memória deste poeta #4]

A ler:

UMA ALDEIA QUE NÃO EXISTE


#1 #2 #3 #4 #5
[de como um leitor acha não se haver desencontrado com a memória deste poeta #3]

RUY BELO

NO WAY OUT


Sei hoje que sou pequeno
e não é esse o meu menor mal
mas faço meus os problemas
da gente de beaver canal

Nasci numa aldeia perdida
nestes caminhos de portugal
mas tanto tenho irmãos aqui
como os tenho em beaver canal

Eu a miséria da minha terra
contemplei-a ao natural
enquanto vi no cinema
como se vive em beaver canal

Mais do que a pedra mais do que a árvore
o homem é para mim real
e tanto sofre a dois passos de mim
como sofre em beaver canal

Não há país que não seja meu
em qualquer parte morro pois sou mortal
mas aproveito a força da rima
para dizer que a minha rua é beaver canal

Morra eu dividido aos quatro ventos
seja o legado sentimental
fique no mundo onde ficar
deixo o meu coração a beaver canal

(de Homem de Palavra[s], 1970)
[de como um leitor acha não se haver desencontrado com a memória deste poeta #2]

ANTÓNIO RAMOS ROSA

(...) A sua profunda insatisfação, mais de raízes ontológicas do que religiosas, leva-o a uma implacável inquirição do real e, consequentemente, ao despojamento de todas as certezas e logros, de todo o sentimento de identidade e de segurança. Interrogando-se, buscando-se, enfrentando obsessivamente a morte e a solidão, é este poeta um dos que melhor testemunham a situação espiritual do homem contemporâneo, para o qual encontra fórmulas de um raro poder expressivo. Se ele atesta a impossibilidade de uma total aceitação da vida, nem por isso a sua poesia se exime à permanente e renovada tentativa de criar um espaço respirável.

(excerto da nota sobre Ruy Belo, in Líricas Portuguesas - quarta série, Portugália editora, 1969 – Antologias Universais)
[de como um leitor acha não se haver desencontrado com a memória deste poeta #1]

AL BERTO / PAULO DA COSTA DOMINGOS / RUI BAIÃO

Nasceu em S. João da Ribeira (Rio Maior) a 27 de Fevereiro, 1933. A morte veio a 8 de Agosto de 1978, em Queluz. Pelos motivos habituais dessa dialéctica bem portuguesa que se ilude no luxo de fechar portas na cara dos poucos vivos, enquanto refocila em tudo o que feda moribundo, a Ruy Belo iam-no ignorando. Bom, a sua passagem pela Opus Dei também o prejudicou bastante. A obra tem vindo a ser coligida por 4 volumes graficamente lastimáveis. Assinalável a tradução de Moravagine de Blaise Cendrars.

(nota sobre Ruy Belo, in Sião, frenesi, 1987)