VITORINO NEMÉSIO
CANTIGAS À ILHA TERCEIRA,
À CIDADE, À PRAIA, E AOS MONTESLá vai a Ilha Terceira
Por riba dos mares afoitos,
Carregadinha de amores,
De mistérios e biscoitos!
Esta nossa Ilha Terceira
Sempre foi alto lugar:
Em amores, bodos e toiros
Fica bem a desbancar.
A Ilha Terceira é fêmea,
Sã Miguel saiu varão,
A Graciosa rapariga
E Sã Jorge tubarão...
Olha os Ilhéus a Sã Bento,
Olha Sã Jorge à Feiteira!
Olha o meu amor comigo
Numa cisma verdadeira!
A nossa Ilha Terceira
Em dois pontos fica atrás:
De Deus do Céu o de ti
Que tanta graça lhe dás!
A Graciosa lá longe
Quando te viu na Sarreta
Teve tanta invejidade
Que de roxa ficou preta!
Ó Angra, nobre cidade,
Que tens baraço e cutelo!
Vê-se a croinha do Pico
Das muralhas do Castelo.
Não subo ao Monte Brasil,
Não sou facheiro nem facho:
Tenho o navio no peito,
Quando o quero sempre o acho.
Ó leal cidade de Angra,
Mimória do meu amor,
Pisão da minha alegria,
Castelo da minha dor!
Angra, maioral cidade,
Desterro do Gungunhana,
Onde fui às cavalhadas
No meu cavalo de cana.
Ó Angra da fidalguia
E da procissão do Triunfo!
Em amores puxei-lhe espadas,
Ganhou-me a dama do trunfo.
Eu fui aos toiros de praça
No dia de S. João:
O meu bem era o capinha,
Atirei-lhe o coração!
Não há terra como a Praia,
Nem abrasão como o seu,
Não há gente como aquela,
Não há amor como o meu!
O meu bem não é da Praia
Porque a sorte na no quis,
Mas como eu nasci na areia
Lá o plantei de raiz.
Ó Praia, muro da fama,
Vila de tanto autorizo,
Só te faltava aquele anjo
Para seres o paraíso!
A Praia é peixe de caldo,
Damasqueiros, escrivães,
E os filhos que vão prà América
Contra vontade das mães.
Quando chegou a Sã Lazro
O meu bem adivinhou
Que eu gostava da ermidinha
Que o verde junco juncou.
Lá foi ver o cemitério
Cheio de saudades minhas
Plantadas pelo Saldanha
Com pena das lazarinhas.
Fez os olhos mais compridos
(Oh que lindo modo o seu!),
Lá disse: «Quero esta cova
Pra me enterrar mais o meu!»
Quatro portões tinha a Praia,
O das Chagas era um:
Falta o da Luz dos teus olhos
E não sei de mais nenhum.
Olha a Praia espaireçosa
Co ua baía daquelas,
E o meu amor embarcado
Dentro das suas janelas!
Quatro torres tem a Praia:
Espital, Cambra e Matriz;
Falta a torre do teu peito,
Quem no sabe é quem no diz!
Sã Bertolameu é faca,
Sã João uma águia tem:
Troixe no bico palhinhas
Pràs meninas de Belém.
Sã Carlos é espaircimento,
Pico da Urze desvio,
As Bicas são n'os teus olhos,
Tuas lágrimas em fio.
O meu amor é das Cinco,
Para lá de Sã Mateus:
É daquelas Cinco Chagas
Que temos do amor de Deus.
A Sarreta são romeiros,
Santa Barba caras lindas,
As Doze – doze confeitos
Que tu, meu anjo, me guindas.
Os Altares é casamento,
Os Biscoitos vinho novo,
Raminho festa de igreja,
A Terceira pão e povo.
Quatro Ribeiras é lenha,
Biscoito Brabo brabeza,
O das Colmeias é mel:
Terceira, tanta beleza!
Ó Agualva do alvoredo,
Da farinha e do castanho,
Ó mãe daquela beleza
Duma tia que lá tenho!
Nossa Senhora da Ajuda
É a mãe de Vila Nova,
Branquinha a pé do Calvário
Como galinha na cova.
Sã Brás do estreito! se diz
À goela do engasgado.
Viva a terra da Mariana,
Com flores nos cornos do gado!
As Lajes era pão alvo,
Agora é «olha o balão!»
E toiradas, «coisa braba!»
Com favica pelo chão.
Cabo da Praia é tabaco,
Pontinhas teia que eu deite,
Cá'da Ribeira o meu quarto,
Canada dos Pastos leite.
Ah, Porto Martim das uvas,
Baga de faia cheirosa,
Minha maçã redondinha,
Pedra negra preciosa!
A nossa Fonte Bastarda
É uma filha da mãe
Que nasceu como um jarrinho
Das muitas grotas que tem.
Ribeira Seca molhada
De leite e de vinho novo,
Minha galinhinha branca,
Massa cevada! meu ovo!
Dizem que a Vila que é feia...
É linda como uma moça!
Teve Cambra e o prevelégio
De lá passares de carroça.
Porto Judeu são casinhas,
Santo Amaro boa vista,
Feiteira uma presa à prova
Da alma que lhe resista.
No guião da Ribeirinha
Vê-se a firmeza do moço
Para trastejar a casa
E pôr a corda ao pescoço.
Terceira, volta da ilha
E moças pelas paredes,
E este cego de cantar
Aquela que vós não vedes!
Pobre da Ilha Terceira!
Coitado de quem é mãe!
Mesmo se um filho é queimado,
Teve as dores... quere-lhe bem!
E as canadas que esqueci
Lá no céu terão a palma:
Seja a terra da Terceira
A nossa coberta de alma!
(de
Festa Redonda, 1950)