14.8.09

MIGUEL TORGA


Angra do Heroísmo, 18 de Março de 1970 — Aprendida nos livros e descrita de viva voz, a Terceira era na minha imaginação uma abstracta mistura de história e pitoresco. Base naval na era dos Descobrimentos; baluarte das liberdades pátrias em várias ocasiões; tombo de nomes gloriosos — Vasco da Gama, Colombo, Vieira e Garrett —; redondel de touradas de corda; refúgio medieval do Espírito Santo... E é outra ilha que levo daqui, depois de a relancear de fugida — com paragens demoradas apenas na Praia da Vitória e nas Lajes, em nome dum velho afecto revivido e dum súbito patriotismo vigilante —, e de ter tido alguns contactos humanos imprevistos. Longe da surpresa, à hora do embarque encontrei no cais, esfumados no lusco-fusco que me toldava os olhos e o entendimento, meia dúzia de jovens à minha espera, de microfone em riste. Neguei a entrevista, claro, mas convidei-os a subir a bordo. E foi no longo serão que acabámos de passar juntos que a imagem literária se transformou na visão objectiva de uma realidade física e espiritual, que tem na angústia indígena a designação bifurcada de «insularidade e contestação».
— Insularidade! — ponderei. — Mas insular é o próprio continente português, cercado de solidão por todos os lados! Insular é o próprio globo em relação ao mundo universo! O que são as viagens à lua, senão tentativas de fuga à insularidade da Terra? A insularidade é uma situação, não é uma condenação...
Quanto ao segundo termo do binómio, à contestação, perguntei apenas que juventude deixou de a fazer algum dia em qualquer latitude, e se não seria justamente razão de optimismo o facto de ela ser possível também ali...
Assim falei, sem grande esperança de os convencer. Com horizontes abertos em todas as direcções — que Anteros e Teófilos o não compreenderam? —, a que outra largueza geográfica e mental aspiravam aquelas almas juvenis? «Português do mar alto» chamou alguém ao homem açoreano. Mas não é fácil às vezes compreender que empoleirado numa gávea de terra se pode ver mais do que sentado num café de Paris...

(de Diário XI, 1973; 2.ª ed. revista: edição do Autor, 1991)

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