30.5.12

BERTOLD BRECHT


MENSAGEM DO POETA MORIBUNDO À JUVENTUDE

Vós, gente moça de futuros tempos e de
Novas auroras sobre cidades que
Ainda não foram construídas, também
Vós, não-nascidos, ouvi
A minha voz agora, de mim que morri
E não em glória.
Mas sim
Como um camponês que não amanhou a leira e
Como um carpinteiro que preguiçoso fugiu
Do madeiramento aberto do telhado.

Assim desperdicei
Eu o meu tempo, esbanjei os meus dias e agora
Tenho que pedir-vos
Que digais tudo o que não foi dito
Que façais tudo o que não foi feito
E que me esqueçais depressa, peço-vos, para que
O meu mau exemplo não venha ainda também a perverter-vos.

Ai, para que me sentei eu
À mesa dos estéreis, a comer do banquete
Que eles não tinham cozinhado?
Ai, porque misturei eu
As minhas melhores palavras
Ao seu pairar ocioso? Enquanto lá fora
Andavam os ignorantes
Sequiosos de aprender.

Ai, porque é que
Não se erguem as minhas canções dos lugares onde
As cidades se nutrem, onde se fazem os navios, porque é que
Não sobem elas como fumo
Das locomotivas dos comboios rápidos, fumo
Que fica para trás no céu?

Porque a minha fala
Aos úteis e criadores
Lhes fica na boca como cinza e gaguejar de bêbedo.
Nem uma palavra só
Eu sei para vós, gerações dos tempos futuros
Nem um gesto a apontar com dedo incerto
Vos poderia dar, pois como
Poderia apontar o caminho quem
O não andou!

Assim só me resta, a mim que assim esbanjei
A minha vida, apelar para vós
Pra que não espreiteis nenhum mandamento saído
Da nossa boca ociosa e que não aceiteis
Nenhum conselho daqueles que
Assim falharam, mas que só
Decidais por vós próprios sobre o que
Seja bom para vós e vos
Ajude a amanhar a terra que nós deixámos decair
E a fazer habitáveis as cidades
Que nós empestámos.


(tradução de Paulo Quintela, in Obras Completas IV - Traduções III, Fundação Calouste Gulbenkian, )

29.5.12


JOÃO GUIMARÃES ROSA


Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de António Dó, tinha um grado jagunço, bem remediado de posses — Davidão era o nome dele. Vai, um dia, coisas dessas que às vezes acontecem, esse Davidão pegou a ter medo de morrer. Safado, pensou, propôs este trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado Faustino: o Davidão dava a ele dez contos de réis, mas, em lei de caborje — invisível no sobrenatural — chegasse primeiro o destino do Davidão morrer em combate, então era o Faustino quem morria, em vez dele. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito não acreditava. Então, pelo seguinte, deram um grande fogo, contra os soldados do Major Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco. Combate quando findou, todos os dois estavam vivos, o Davidão e o Faustino. A de ver? Para nenhum deles não tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses, escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos eles não saíam... Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia...
Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, sem os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça? Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E ele me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O fim? Quem sei. Soube somente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem — deu baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa também, e viesse morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...


(excerto de Grande Sertão: Veredas, 1956)

28.5.12

ALEXANDRE PINHEIRO TORRES


O MONOPÓLIO DA SABEDORIA

Homens sábios avançam pelas planícies
chegam ao pé de nós e dizem      Vocês são
aves de rapina      Nós pequeninos ratinhos
E logo nos crescem duríssimas asas

e garras de afiadas pontas e vemo-nos
a pairar ameaças entre mar e terra      A nossa
sombra alastra nas campinas      sobreiros
e oliveiras      É isto um pesadelo?

Acordamos suando a tactear de novo o mundo
Homens ainda mais sábios entram-nos nas searas
e dizem      Vocês afinal são lobos e nós cabrinhas
Pulando de raiva andamos à volta nas clareiras

repelimos os sábios      mas alguns dos nossos dizem-nos
Olhem como despontam já as vossas orelhas de lobo
E correm amedrontados a juntar-se às cabrinhas
e estas festejam-nos com almudes de vinho e leitinho


(de O Ressentimento dum Ocidental, Moraes editores, 1981)