DIANA ALMEIDA
HOJE NOS SUBÚRBIOS À TARDE
(ao Eduardo Guerra Carneiro)
acredita na inspiração?
poderia ter perguntado
sempre a respirar falava
de poemas, claro
e hoje nos subúrbios à
tarde cinzenta de um maio
invernoso, foram-se as andorinhas
mas os pássaros cantam ainda
a anunciar a madrugada
respondem ao seu assobio
encantado até, ao abrir a
janela, para o rio azul cobalto
amanhece tão depressa na
cidade o chá arrefecia nas
chávenas dos anos 30
(casamento dos meus pais,
sublinhou, partira já um outro serviço)
era tília rosada, uma tisana,
poderíamos talvez ter feito uma
infusão de trevos de quatro folhas,
nascia um terceiro no vaso da
cozinha por cima de uma colher de pau
como estaca.
O Príncipe da Noite guiou-nos
numa atitude de profissionalismo
solícito até ao camarote presidencial
de onde expulsou uma puta grande
um travesti de branco e um homem
as russas acabavam uma dança de
ventres e lantejoulas penas na cabeça
um cenário de David Lynch
que me fez lembrar Blue Velvet em
vermelho, num dos cabarets
mais antigos de Lisboa
(espaço que seria depois retratado em
uma lamentável revista aburguesada,
transpirando luzes e efeitos hilariantes,
ainda em cena...), genuína
miséria, o Peter não pode entrar
de ténis e como tem um pé
muito grande, constatou consternado
o primeiro empregado antes
do Príncipe, não lhe podemos
arranjar sapatos, e eu divertida
nos meus doc martins esboroados
salva pelas conveniências.
de táxi vamos sempre mais longe
pelas ruas enlameadas da
cidade à noite cálido álcool
pode sim mas tenha cuidado
com os estofos, a língua queimada
do tabaco com brandura ao
contrário dos costumes nacionais
ferozes insurreições evocadas nos
dedos ó profeta de revoltas adiadas.
que vai embalado por um saudosismo barroco
os sonhos de cristais: Lucy in the
sky with diamonds, candeeiros.
de que falarão os poetas?
olhos de mulheres últimas
como o sol, a própria luz nos dias
as palavras que dizem outros poetas
como tesouros, junto às plantas
na casa esses livros a crescer
e também de música a
memória como uma longa ausência
de que falam os poetas,
senão de amor?
(in Dez, edição dos Autores, 1995)