2.12.05

[Fernando Pessoa visto do exterior - II]

JOHN WAIN

Ele, o Sr. Pessoa, acolhia bem a vida. Vamos escrever com letra grande:
amava e era sensível à Vida, e se ela assumia um semblante
ele ficava contente por saudá-la e tinha o quarto limpo expressamente
para acolher a deusa - mas não tentava prendê-la ou demorá-la.
Há homens que se portam como se a vida fosse uma jovem apetecida:
armam ciladas, fazem negaças, exibem-se se sabem que ela os vê.
O Sr. Pessoa por seu lado lidava com a vida mais como vizinho:
ela nunca andava longe e ele tinha a certeza de a encontrar às vezes.
Costumavam falar na rua, cavaqueio sem outras intenções,
às vezes ela passava lá por casa e então durava mais o convívio,
ela era visita, ele anfitrião, e o diálogo parecia mais estruturado
depois, já de saída, mais um sorriso, cinco minutos de conversa à espera do carro.
O grande desejo do Sr. Pessoa era só que a Vida o aceitasse
como presença sem pretensões, amante que não ousava possuí-la:
ficar ali, quieto, confiante, até ao dia de irem buscar o seu caixão.

(de Reflexões sobre o Sr. Pessoa / Thinking about Mr Person, tradução de João Almeida Flor, edições Cotovia, 1993 - 1ª edição: Fenda edições, 1981)

1.12.05

[Fernando Pessoa visto do exterior - I]

IVAN STRKPA

LISBOA, POSTA RESTANTE


Nada se passa connosco: somos nós
que se passa. Mas quem é de facto
este intervalo entre mim e eu?
Entre Eu e outro Eu que poderá
haver também de irrealmente irreal?

Não há gente. Não há notícias. A cintilante
corneta dos CORREIOS baloiça em vão
em cada canto da cidade,
com o cavaleiro ondulando ao vento
em todas as bandeirolas vermelhas da PORTUGAL TELECOM.
Em Paris calou-se
Sá-Carneiro. Chevalier de Pas, Alberto Caeiro, Ricardo
Reis, o engenheiro naval Álvaro de Campos e também ORPHEU
há muito que morreram. Febrilmente jovem
Alexander Search sorveu como um relâmpago os seus malditos
flashes of madness e terminou isto
at twenty odd. A. A. Crosse desapareceu
sem ver a cor de nenhum prémio
nas grandes corridas de charadistas do Times.
Bebé, Bebezinho, a Ophelinha pequena evaporou-se
(há muito e depois mais uma vez. A última)
como uma velhinha decrépita e senil. Bernardo
Soares, o funcionário silencioso na rua dos Douradores.
emudeceu sem deixar rasto. Ninguém
escreve. A Tabacaria Costa e também a famosa tasca do Abel
já fecharam há muito. A Brasileira
está dia e noite cheia de turistas que tacteiam
nas canecas de cerveja as Tuas impressões digitais
e a Tua visão etérea.

A ausência de notícias gera em nós
velhas imagens: numa de entre mil fotografias
desbotadas (juntas com a Tua bem oculta
aura e com a arca de manuscritos que Te
sobreviveu) estrangeiro aqui como em toda a parte
vais caminhando, completamente só
- com nobreza, com óculos, inútil e vão,
Hermes multiplicado na Baixa e no Chiado,
na brisa leve do Tejo - pelo
Terreiro do paço, andas por aqui,
até ao Teu preferido, anónimo
e mais hermético lugar de comunicação
improvável. E a meus olhos,

nos vidros da porta giratória dos Correios,
através dos instáveis brilhos mercuriais,
espectral e impessoalmente vibra a Tua estátua
criadora de Mestre Nada, multiplicando
os seus enganadores e mentirosamente fiéis reflexos,
que nunca se encontram num Todo,
nem quando descrevem o seu círculo de novo aberto.
Nem quando abrem o seu círculo descrito na porta.
Nunca entram

(como um
homem, o rosto pamplinesco de pedra
e o chaplinesco sorriso invisível debaixo
do elegante chapéu defita larga
no fim dos anos vinte deste século),
mantendo como só ele mantinha
esse vibrante e oculto intervalo, reverberando
através da misteriosa e sobre-humana extensão
do silêncio atlântico.

Fernando, aqui
na Rua do Arsenal,
nas entranhas da Posta Restante da cidade de Lisboa,
a Tua única morada sempre válida,
o transparente e vazio apartado 147,
hermeticamente fechado, só eu,
quase totalmente à beira da sede imaginária,
no alegre cansaço de Ninguém e da visão astral,
seguindo as suas pegadas em todos os lugares
onde repousas, durante todo este
Abril de 95 etereamente irradiante,
espero para breve a tua resposta.

(de Planície, Sudoeste e outros poemas, tradução colectiva revista e apresentada por Luís Quintais, Quetzal editores, 1999)

30.11.05

DINIS MACHADO

(...)Sinto mas não penso. Fernando Pessoa andou, antes de mim, por estas frases, escreveu os versos onde todos nos relemos. Mas não viveu isto.
(...)

(in Reduto quase final, Bertrand editora, 1989)
FERNANDO PESSOA

- Comecemos por distinguir trez coisas que habitualmente se confundem quando se fazem referencias ao «Orpheu». Por «Orpheu» entende-se umas vezes a revistas com aquelle nome, de que sahiram só dois numeros, em Março e Junho de 1915; outras vezes os que estiveram ligados a ella, ainda que como simples espectadores proximos ou amigos, e sem que nella influissem ou collaborassem; outras vezes ainda, os que escreveram subsequentemente em estylo similhante ou approximado ao dos que de facto collaboraram no Orpheu.
- Ora eu parto do principio de que o que v. quere saber é como se organizou e lançou a revista «Orpheu», e de como foi recebida. É a isso, pois, que vou responder. Isto explicará desde logo, evitando confusões ou melindres que sem esta explicação se poderiam sentir justificados, porque motivo não cito varios poetas e escriptores que, pela mesma altura ou mais tarde, escreveram em estylo ou modo parecido com o nosso. Explicará tambem porque não vou buscar antecedentes, episodios anteriores à preparação do Orpheu, ou até as origens, reaes ou presumiveis, da corrente litteraria, pois foi uma corrente e não uma eschola, que semanifestou no Orpheu mas já antes começára.
- Vamos, pois, ao caso do apparecimento da revista. Em principios de 1915 (se não me engano) regressou do Brasil Luiz de Montalvor, e uma vez, em Fevereiro (creio), encontrando-se no Montanha commigo e com o Sá-Carneiro, lembrou a idéa de se fazer uma revista litteraria trimestral - idéa que tinha tido no Brasil, tanto assim que trazia para collaboração alguns poemas de poetas brasileiros jovens, e a idéa do proprio titulo da revista - «Orpheu». Acolhemos a idéa com enthusiasmo, e como o Sá-Carneiro tinha, além do enthusiasmo, a possibilidade material de realisar a revista, passou immediatamente a dar o caso por decidido, e desde logo se começou a pensar na collaboração. Contanto mais enthusiasmo acolhemos a idéa quanto é certo que ambos nós haviamos projectado varias revistas, mas sempre, por qualquer razão, os projectos haviam esquecido. O que esteve mais proximo de se realisar foi o de uma revista pequena, entitulada «Europa», que abriria por um manifesto, de que escrevi apenas uns quatro paragraphos, com collaboração occasional de Sá-Carneiro, e de que me lembro ser uma dasprincipaes affirmações a da nossa necessidade de «reagir em Leonino» contra o ambiente - phrase tendente, é claro, para a perfeita elucidação do publico.
- O certo, porém, é que se decidiu publicar o Orpheu. Sem perda de tempo se adoptaram o nome e a periodicidade, e se estabeleceu o numero de páginas - de 72 a 80 em cada numero. E ficou egualmente assente que figurariam como directores o Luiz de Montalvor e um dos poetas brasileiros seus amigos - Ronald de Cravalho. Digo «figurar como directores» sem intuito algum reservado. A direcção real da revista era, e foi sempre, conjuncta, por estudo e combinação entre nós trez e tambem o Alfredo Guisado e o Cortes Rodrigues, de quem fallarei a seguir. Ficou assente tambem, que o Luiz de Montalvor escrevesse o prefacio da revista, o que de facto fez, não collaborando porém no primeiro numero por não ter prompto ou não considerar prompto o poema com que de facto collaborou no segundo.
No mesmo dia ou no dia seguinte expuzemos, Sá-Carneiro e eu, a idéa da revista ao Alfredo Guisado e ao Cortes Rodrigues, e pode dizer-se que o numero ficou completo, sobretudo depois de termos obtido a collaboração do Almada Negreiros, que providencialmente tinha completado uma pequena série, interessantíssima, de trechos em prosa, a que pôs o título «Frisos» quando os inseriu na revista.
O Orpheu foi logo para a typographia, ficando eu apenas a completar o «Opiario» do meu personagem Alvaro de Campos, que embora hypotheticamente escripto antes da «Ode Triumphal» o foi realmente depois.
O numero foi de facto bem organizado. Começava, àparte o prefacio, com uns poemas do Sá-Carneiro e fechava com a «Ode Triumphal» do meu velho e inexistente amigo Alvaro de Campos. E, a proposito de Ode Triumphal. Para dar, mesmo para os proximos de nós, uma idéa de individualidade do Alvaro de Campos, lembrei ao Alfredo Guisado que fingisse ter recebido essa collaboração da Galliza; e assim se obteve papel em branco do Casino de Vigo, para onde passei a limpo as duas composições. Lembro-me ainda do Antonio Ferro e Augusto Cunha, então muito novos, e que frequentemente iam pelos IrmãosUnidos, lerem attentamente, sòsinhos numa mesa ao fundo, essas composições inesperadas; assim como me lembro do Almada Negreiros, depois de ler com enthusiasmo a Ode Trimphal, me saccudir fortemente pelo braço, visto a minha falta de enthusiasmo, e de me dizer, quasi indignado: «Isto não será como v. escreve, mas o que é é a vida». Senti que só a sua amisade me poupava à affirmação implicita de que Alvaro de Campos valia muito mais do que eu.
- Assim a blague começava em casa?
- A blague? De certo modo. Mas é bom entendermo-nos sobre isso de blague, pois fomos accusados de «fazer blague» em tudo quanto escreviamos e faziamos.
Quando vi que o Orpheu era dado como propriedade de «Orpheu Ltda.» observei ao Sá-Carneiro que era preferivel dizer «Empreza do Orpheu» ou coisa parecida, e não empregar uma designação de sociedade por quotas. «E se alguem se lembrar de pedir a certidão de registo no Tribunal do Commercio?» «Você crê?» disse o Sá-Carneiro. «Deixe ir assim. Gosto tanto, tanto da palavra limitada». «Está bem» respondi, «se o caso é esse, vá. Mas, olhe lá, que serviço é este de o Antonio Ferro figurar como editor. Elle não pode ser editor porque é menor». «Ah, não sabia, mas assim tem muito mais piada!» E o Sá-Carneiro ficou contentissimo com a nova illegalidade. «E o Ferro não se importa com isso?» perguntei. «O Ferro? Então v. julga que eu consultei o Ferro». Nessa altura desatei a rir. Mas de facto, informou-se o Ferro e elle não se importou com a sua editoria involuntaria nem com a illegalidade d'ella.
Por exemplo? Reviamos nós, Sá-Carneiro e eu, as provas da primeira folha, quando me surgiu, no prefacio de Luiz de Montalvor, a phrase «maneiras ou fórmas» transtornada em «maneiras de formas». Ia a emendar, quando o Sá-Carneiro me suspendeu. «Deixe ir assim, deixe ir assim: assim ainda se entende menos.»
Um sonetilho de Ronald de Carvalho vinha, por distracção ou outro qualquer motivo, mal pontuado. Tinha só um ponto no fim das quadras e outro no fim dos tercetos. Esta deficiencia lembrou-me a extravagancia de Mallarmé, alguns de cujos poemas não teem pontuação alguma, nem no fim um ponto final. E propuz ao Sá-Carneiro, com grande alegria d'elle, que fizessemos, por esquecimento voluntario, a mesma coisa ao soneto de Ronald de Carvalho. Assim sahiu. Quando mais tarde um critico apontou indignadamente que «a unica coisa original» nesse soneto era não ter pontuação, senti deveras um rebate longinquo num arremedo de consciencia. Depressa me tranquillisei a mim mesmo. A falta de fim justifica os meios.

(texto, originalmente dactilografado, publicado como inédito em Nova Renascença Número 2 - Inverno de 1981 - sem indicação do destinatário, nem da data - grafia como no original)
FAMOUS LAST WORDS

Fernando Pessoa, hoje há 70 anos: "Tragam-me os óculos"