1.12.05

[Fernando Pessoa visto do exterior - I]

IVAN STRKPA

LISBOA, POSTA RESTANTE


Nada se passa connosco: somos nós
que se passa. Mas quem é de facto
este intervalo entre mim e eu?
Entre Eu e outro Eu que poderá
haver também de irrealmente irreal?

Não há gente. Não há notícias. A cintilante
corneta dos CORREIOS baloiça em vão
em cada canto da cidade,
com o cavaleiro ondulando ao vento
em todas as bandeirolas vermelhas da PORTUGAL TELECOM.
Em Paris calou-se
Sá-Carneiro. Chevalier de Pas, Alberto Caeiro, Ricardo
Reis, o engenheiro naval Álvaro de Campos e também ORPHEU
há muito que morreram. Febrilmente jovem
Alexander Search sorveu como um relâmpago os seus malditos
flashes of madness e terminou isto
at twenty odd. A. A. Crosse desapareceu
sem ver a cor de nenhum prémio
nas grandes corridas de charadistas do Times.
Bebé, Bebezinho, a Ophelinha pequena evaporou-se
(há muito e depois mais uma vez. A última)
como uma velhinha decrépita e senil. Bernardo
Soares, o funcionário silencioso na rua dos Douradores.
emudeceu sem deixar rasto. Ninguém
escreve. A Tabacaria Costa e também a famosa tasca do Abel
já fecharam há muito. A Brasileira
está dia e noite cheia de turistas que tacteiam
nas canecas de cerveja as Tuas impressões digitais
e a Tua visão etérea.

A ausência de notícias gera em nós
velhas imagens: numa de entre mil fotografias
desbotadas (juntas com a Tua bem oculta
aura e com a arca de manuscritos que Te
sobreviveu) estrangeiro aqui como em toda a parte
vais caminhando, completamente só
- com nobreza, com óculos, inútil e vão,
Hermes multiplicado na Baixa e no Chiado,
na brisa leve do Tejo - pelo
Terreiro do paço, andas por aqui,
até ao Teu preferido, anónimo
e mais hermético lugar de comunicação
improvável. E a meus olhos,

nos vidros da porta giratória dos Correios,
através dos instáveis brilhos mercuriais,
espectral e impessoalmente vibra a Tua estátua
criadora de Mestre Nada, multiplicando
os seus enganadores e mentirosamente fiéis reflexos,
que nunca se encontram num Todo,
nem quando descrevem o seu círculo de novo aberto.
Nem quando abrem o seu círculo descrito na porta.
Nunca entram

(como um
homem, o rosto pamplinesco de pedra
e o chaplinesco sorriso invisível debaixo
do elegante chapéu defita larga
no fim dos anos vinte deste século),
mantendo como só ele mantinha
esse vibrante e oculto intervalo, reverberando
através da misteriosa e sobre-humana extensão
do silêncio atlântico.

Fernando, aqui
na Rua do Arsenal,
nas entranhas da Posta Restante da cidade de Lisboa,
a Tua única morada sempre válida,
o transparente e vazio apartado 147,
hermeticamente fechado, só eu,
quase totalmente à beira da sede imaginária,
no alegre cansaço de Ninguém e da visão astral,
seguindo as suas pegadas em todos os lugares
onde repousas, durante todo este
Abril de 95 etereamente irradiante,
espero para breve a tua resposta.

(de Planície, Sudoeste e outros poemas, tradução colectiva revista e apresentada por Luís Quintais, Quetzal editores, 1999)

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