26.7.07

LÊDO IVO

PALHA DOURADA


Somos o que a perfeição
nos deixa ser.
As abelhas zumbem
na tarde de verão
e o mundo é vão:
mão que escorrega
no corrimão;
raio de sol
no chão.

Somos tudo o que se esvai:
a sombra, o grito,
o amor, a fumaça.
O dia passa
como um gavião.
E a tua mão
pousa afinal,
palha dourada,
na minha mão.

(de Crepúsculo Civil, editora Record, 1990)

23.7.07

ANA HATHERLY

Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros.
Não vejo nenhuma diferença de princípio entre
um aperto de mão e um poema.
(Paul Celan)



A verdadeira mão que o poeta estende
não tem dedos:
é um gesto que se perde
no próprio acto de dar-se

O poeta desaparece
na verdade da sua ausência
dissolve-se no biombo da escrita

O poema é
a única
a verdadeira mão que o poeta estende

E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta

(de O Pavão Negro, Assírio & Alvim, 2003)

22.7.07

PAUL ÉLUARD

DOMINGO À TARDE


Enlaçavam-se os domínios arqueados de uma aurora cinzenta, num país cinzento, sem paixões, tímido,

Enlaçavam-se os céus implacáveis, os mares interditos, as terras estéreis,

Enlaçavam-se os galopes incansáveis de cavalos magros, as ruas onde já não passavam os carros, os cães e os gatos moribundos,

Aureolavam-se as aparências, os dias infindáveis, dias sem luz, as noites absurdas,

Aureolava-se a esperança de uma neve definitiva, marcando na fronte o ódio,

Adensavam-se os astros, adelgaçavam-se os lábios, alargavam-se as frontes como mesas inúteis,

Curvavam-se os cumes acessíveis, adoçavam-se os mais insípidos tormentos, comprazia-se a natureza numa única função,

Respondiam-se os mudos, escutavam-se os surdos, olhavam-se os cegos

Nestes domínios confundidos onde até as lágrimas só se miravam em espelhos lamacentos, neste país eterno que misturava os países futuros, neste país onde o sol ia sacudir as suas cinzas.


(Tradução de António ramos Rosa, in Antologia, edições Tempo, [s/d] - original de Poésie et Vérité, 1942)