24.5.12

[outros melros LXV]  

MICHAEL HAMBURGER


Conversação com um melro

'Fazes favor, fazes favor, fazes favor'
começa ele, e eu espero o resto
que vem, indistinto e sem ênfase.
'Afasta-te', creio compreender,
ou 'deixa andar', posso ter ouvido ou não:
as vogais são confusas,
as consoantes faltam.
Oh, e o ritmo é livre
depois desse cortês pedido.

Traduzido, o meu assobio de resposta diz:
'Sê mais explícito. A nossa espécie não suporta
coisas incertas, canções com o fim em aberto.
Ser deixado a adivinhar é mais
do que aguentamos muito tempo.

Ri-se? 'Por favor, por favor, por favor'
é a resposta. E então coloratura, e nela estas frases:
'Eu repito, o fim não cito.
São mistérios, mistérios de cantor.
Improviso, o tempo aviso.
Ora subo, e ora piso.
E volito. Não hesito
se o indefinido imito.
E ora fito, chilrozito. Ora saltito.'


(tradução de Vasco Graça Moura, in Poesia em Lisboa 1997, Casa Fernando Pessoa e P.E.N. Clube Português, 1997)


23.5.12

OCTAVIO PAZ


QUATRO CHOUPOS

Como atrás de si mesma, vai esta linha
pelos horizontes confins se perseguindo,
e, no poente sempre fugitivo
em que se busca, se dissipa

- como esta mesma linha,
pelo olhar levantada,
forma todas as letras
numa coluna diáfana
resolvida em não tocada,
nem ouvida, nem degustada, mas pensada,
flor de vogais e consoantes

- como esta linha que não pára de se escrever,
e, antes de se consumar, reganha corpo,
sem cessar de fluir, mas p'ra cima:

os quatro choupos.
                           Aspirados
pela altura vazia, e, ali em baixo,
num charco feito céu, reduplicados,
os quatro são um só choupo,
e são choupo algum.

                          Atrás, copas em chamas
que se apagam - a tarde, à deriva -
outros choupos, feitos andrajos espectrais,
interminavelmente ondulam,
intermináveis, de imóveis.

O amarelo desliza para o rosa,
no violeta, a noite se insinua.

Entre o céu e a água,
há franjas azuis e verdes:
sol e plantas aquáticas,
caligrafia flamejante,
escrita pelo vento.
É um reflexo, noutro suspenso.

Trânsitos: pestanejar do instante. 
O mundo perde corpo, 
é uma aparição, é quatro choupos, 
quatro moradas melodias.

Frágeis ramos trepam pelos troncos.
São um pouco de luz, e outro tanto de vento.
Vaivém imóvel. Com os olhos,
oiço-os murmurar palavras de ar.

O silêncio segue com o ribeiro, 
com o céu regressa.

É real o que vejo: 
quatro choupos sem peso, 
plantados em vertigem. 
Uma fixidez que se precipita 
para baixo, para cima, 
para a água do céu do remanso, 
num esbelto afã sem desenlace, 
enquanto o mundo zarpa no obscuro.

Pulsar de claridades últimas:
quinze minutos confinados,
que Cláudio Monet viu de uma barca.

Na água, abisma-se o céu, 
em si mesma se afunda a água, 
o choupo é um tiro opalino: 
não é sólido, este mundo.

Entre ser e não ser, a erva titubeia,
aligeiram-se elementos,
os contornos se esfumam,
lampejos, reflexos, reverberações,
cintilar de formas e presenças,
névoa de imagens, eclipses,
isto, que vemos: as miragens que somos.


(de Árvore Adentro, tradução de Luís Alves da Costa, Vega, 1994)

22.5.12



LUÍS QUINTAIS


Vivaldi

Depois de Vivaldi cessará toda a miséria.
Há músicas assim. Vêm até nós
para nos guiarem ao sítio lento

onde a alma se redefine, muda de pele,
já não para o ressentimento, mas para
uma alegria súbita e sem tempo

com a qual a entrevista paisagem
de prenúncios trágicos se suspende,
e uma dança transfigura os mínimos sinais

da celebrada maldição
e os lança aos imensos ventos
da miséria cultivada,

como se lhe oferecesse o voraz alimento
procurado, o que, por estratégia
ou diversão, te roubará ao desespero.

Para que se descreva a partitura,
o testemunho do porvir
onde tumultuados céus se extinguem,

sentirás, com o teu sangue, que alguém — 
Vivaldi — cantou prodigiosamente 
no alto das falésias do tempo,

e conhecendo por antecipação a tua mágoa 
cantou para ti e para mais nenhum outro.


(de Angst, livros Cotovia, 2002)