24.1.09

ÁLVARO LAPA

A LIÇÃO DOS GRAFITTI

Varel caminha agora no campo ameno dos cactos, das trepadeiras, dos coelhos. Vai olhando em volta, satisfeito pela aragem que de momento se elevou. Afasta alguma sarça mais cerrada, busca o caminho por entre arbustos cada vez mais duros e a atenção eleva-se-lhe para o sol que oscila entre os ramos. O terreno desce agora para um ní¬tido vale onde avista pedras e um regato. Escorrega até ao fundo do pequeno abismo poeirento, e salta o regato para a outra margem. Sombrio, o lugar. Senta-se no chão e agarra o solo. A seu lado uma pedra grande, de sob cuja poeira irradia um nítido traçado intencional. Limpa e lê: O CAMPO É MUITO VASTO.

(de Raso como o chão, editorial Estampa, 1977)

23.1.09

ALEXANDRE ANDRADE

Se alguém cometesse o erro flagrante de questionar Benoni sobre a natureza da consciência, olharia para um rosto em branco, de olhos perdidos, e não escutaria qualquer som. Se não se sentisse desencorajado pela vacuidade do olhar, pela palidez excessiva da pele, pela desconsoladora e insípida desordem das feições, poderia ser tentado a repetir a pergunta. Por exemplo: «Benoni, o que é para ti a consciência?» E desta vez obteria resposta. Oh sim, porque Benoni nunca negava resposta duas vezes à mesma pergunta. Em parte por causa de experiências pouco agradáveis guardadas na sua memória, em parte fruto da lógica binária que ele chegou a privilegiar. Não seria Benoni que deixaria uma pergunta duas vezes por responder, nunca Benoni. Simplesmente, seria difícil que a sua resposta pudesse ser satisfatória, mesmo para a mais aberta das mentalidades. Ainda que lhe fosse possível verbalizar, hipótese improvável, nunca as suas palavras formariam sentido. E mesmo que as suas palavras formassem sentido, hipótese improbabilíssima, nunca poderiam ser consideradas como resposta adequada a uma pergunta tão precisa. E mesmo que as suas palavras pudessem ser consideradas como resposta adequada, hipótese que ameaça os limites do absurdo, nunca exprimiriam aquilo que Benoni, de facto, sentia. E tudo isto por uma razão muito simples. Acontecia que a consciência era um dos problemas mais dramáticos que alguma vez lhe tinha sido posto. Sentir-se-ia feliz se o pudesse ignorar por completo. Benoni sentia um certo orgulho no equilíbrio, mais ou menos estável, que conseguira atingir entre o interior e o exterior, entre os ecos sinistros de galerias recônditas e a imensidão fria, brilhante, dispersa. Se se deixava cair na armadilha da consciência, sentia-se capaz de se fechar para sempre sobre si mesmo. «Estou consciente... de mim mesmo, por exemplo? Dos outros?», eis uma interrogação típica. Ignorar a consciência era, para ele, garantir a subsistência dos diversos compromissos que fora estabelecendo ao longo do tempo, compromissos que ele sabia não serem naturais, nem eternos, mas aos quais não ousava renunciar.

(excerto de Benoni, editorial Notícias, 1997)

22.1.09

HERBERTO HELDER


ou: o truque cardiovascular, ou:
a técnica da paixão, quero eu dizer: o estilo de
restituir ao seu conexo sobressalto, de sangue
autoral, os bruscos
poemas transracionais, ali, onde
o mundo reconhece o mundo,
sítio para sermos estudantes do sentido:
tão acima arrebatados pela
razão jubilatória:
porque
um poema é a melhor crítica a um poema,
John Cage,
se
se pensa na roupa: quando a talham, e a beleza atravessa o ar,
e alguém morre com ela, e o despem para o vestirem
com outra roupa, e entre
as duas cenas salta a luz naquele corpo que não morre nunca,
e é também um poema esta cena terceira,
digo:
porque se trata da luz a trabalhar e mais nada:
nasce de uma espécie de mecânica quântica, poema
nu ou vestido na escuridão, maravilha
irreal estroboscópica
da beleza como que
com
as janelas em volta: o videoclipe que transita,
o corpo que transita,
e o nome inominável, ele, o
écran plasma tv para o tremor dos fotões dentro e fora,
nem num sítio nem noutro,
cabeça, espáduas, membros, e o etc. geral conjunto, e as águas
destapadas que os abraçam,
poema contra poema, inóspita beleza! enquanto
o texto
se abrasa: outra
crítica, não a que não encarna, porque é milagre,
o âmago escrito, o minúsculo, o escondido,
mostra em grande plano a mão queimada se por exemplo
ao meio do clipe sombrio
é todo assim por baixo:
o fogo

(de A Faca não Corta o Fogo, in Ofício Cantante, Assírio & Alvim, 2009 – documenta poetica)
CARLO VITTORIO CATTANEO

Herberto
_______sobre uma pista de raízes queimadas nas cavernas
do metropolitano tenteaste os degraus
onde as grandes
flores da loucura emudeciam – a cada passo a casa
erguia-se tecendo tramas de corredores
no frio de quartos e janelas
escancaradas à negra fixidez dos sóis
entre os espelhos roídos pelos ventos de uma europa
que talvez fosse só juventude (o que mora
no alto é igual
ao que em baixo mora) – porém na confusa
medianidade da visão está o tributo
a cada conhecimento se se fecha o nó da dupla
solidão e cegos então cada coisa nos revela
o avesso como quando uma criança a ama
com o terror
que transforma a inocência em alegria
_______________________________quando o desconhecido
te invade os dias Herberto esquece o seu nome a comovida
obscuridade da mulher e os rostos cruzarão
sorrisos e ansiedade na rua de repente indecifráveis
porque o desconhecido é um muro onde não se filtra o amor
nem a ferocidade dos gestos quotidianos (como
um círculo de beleza em expansão uma luz que plasma
desertos onde pousa) e é festa de espinhos
um incêndio sacral assinalando a tua viagem com as cifras
menstruais já fim de uma infância perseguida
pelas visões – quem parte
deixa o corpo e entreabre a porta sobre as paisagens de sombra
até que se encante no ritmo a loucura encontrando
voz em cada meandro das fontes no meio das folhas
com olhos maternos de terra e os ossos se vistam
de um sólido nevoeiro porque a morte é uma ponte
batida pelos passos de quem ousou conhecer tensa para unir
a ferida de abismo que nos lacera por dentro (sem memória
de uma outra idade quando as mãos criavam palavras
para cada coisa desentranhada do silêncio de um tempo
ainda imóvel)
___________Herberto morremos e renascemos sós
não há companheiro que te possa vigiar o caminho
se o sono é um emaranhado de sarças pedras e vozes
enganadoras nem a mulher saberá decifrar os triunfos
da derrota – o viajante
estrangeiro voltará por entre os nomes esvaziados de cada vida
terá sílabas acesas por uma pasmada ternura
mas ninguém o escuta (o medo fecha
ao imprevisto as fendas mais secretas) e então surge
dura de ansioso amor a nova solidão e ao alto
dentro da casa irrompe como um vento a poesia


Roma, 1981

(de Três Solidões, versão portuguesa de “ilustres amigos” sobre uma tradução literal do Autor, Contexto, editora, 1982 – Cábulas de Navegação)

21.1.09

PAULO CONDESSA

sessão de poesia

n 14101999

Eu sei lá o que é a poesia, dizia o poeta. Fazem-me com cada pergunta. Escrevam aí silêncio. Silêncio. Eu era eu e muitas pessoas ao mesmo tempo. Estava aqui onde estou e vocês aí onde estão. Agora estou a ver se o fígado responde à vossa pergunta. Claro que o silêncio escondeu a vossa pergunta. Mas sei que a fizeram. Não vos escondeu os olhos. Nem essas luzinhas que alguns têm à volta da cabeça. Que pergunta. Eu sei lá o que é a poesia. Ora apalpem o fígado. O fígado tem uma opinião particular da poesia, como devem calcular Há gente que pensa que o fígado é amarelo. Eu pensava. Mas é castanho ou vermelho depende da lanterna. Apalpem o fígado mas ninguém apalpou. É sempre assim na poesia. As pessoas não a levam a sério. Se não a levam a sério para que raio querem saber o que é? Para pôr no telejornal? Não brinquem comigo. Se estivessem aqui crianças a conversa era outra. Uma criança joga logo a mão ao fígado. Experimenta. Sem experimentar não há poesia. Ora calcem lá umas luvas. Ora tirem lá as luvas. Qual é a diferença? O fígado é uma espécie de filtro, com guichets e barreiras que sobem e descem e olhos a espreitar lá de dentro. Um poema que entre no fígado faz maravilhas. Claro nos intestinos. No coração. Mas agora estamos no fígado e além disso os poemas não vão a todo o lado. Ora apalpem o fígado. Se os dedos forem estetoscópios, em vez dos esteticoscópios que abundam, sentem logo as vibrações do poema a rearranjar as ligações da linfa. Não são as letras que entram nos tecidos, é só um tremido, uma insubstância linfática que mexe nas células parecem uma orquestra escangalhada pede sempre ajuda a um menino. Não chorem. Está ao vosso alcance. Ponham coisas de parte. Deixem-se de merdas. Furem o espelho com os olhos de manhã. Uma coisa vos garanto. Sem perguntar ao fígado nunca vão saber a opinião do fígado sobre a poesia. Fazem-me com cada pergunta. São do telejornal? Mas não se importavam de ser, pois não? Aah.

(de bizz dizz, Mariposa Azual, 2000)

20.1.09

JORGE GONZÁLEZ BASTIAS

PERTO DO MAR A MÚSICA É MAIS SÁBIA


Perto do mar a música é mais sábia:
humaniza o seu som,
E põe nas suas cadências um estranho
estremecimento do coração.

À sua modulação humana, junta
esse gemer, esse implorar
que vem do fundo dos séculos
para na areia cantar.

Perto do mar há ternuras novas
em sua plena virtude,
e é maravilha na maravilhosa
natureza em plenitude.

Com mais eternidade nos seus timbres
grande e humilde é simultaneamente.
À alma oferece o seu recolhimento
em milagroso germinar.

À alma oferece tudo o que é vida:
o devaneio, a dor,
e tudo se torna puro e luminoso
banhado em ritmo criador.

(tradução de José Agostinho Baptista, in O Mar na Poesia da América Latina, selecção dos textos de Isabel Aguiar Barcelos, Assírio & Alvim, 1999 – documenta poetica)

19.1.09

C. S. LEWIS

Porque dou eu guarida no meu espírito a tanto lixo e disparate? Estarei na esperança de que, se o que sinto se disfarçar de pensamento, sentirei menos? Não serão todas estas notas as contorções sem sentido de um homem que não quer aceitar o facto de que nada há a fazer quanto ao sofrimento, a não ser sofrê-lo? Que ainda julga haver alguma manigância (se ao menos ele a conseguisse descobrir) que faça a dor deixar de ser dor. Mas, na realidade, pouco importa que nos agarremos aos braços da cadeira do dentista ou que mantenhamos as mãos quietas no colo. A broca continua a brocar.
E a dor continua a assemelhar-se ao medo. Talvez, mais precisamente, à ansiedade. Ou à expectativa. Estar simplesmente na expectativa de que alguma coisa aconteça. E isso dá à vida um sentido permanentemente provisório. Não parece que valha a pena começar a fazer seja o que for. Não consigo sossegar. Bocejo, agito-me, fumo demais. Até isto acontecer, tinha sempre demasiado pouco tempo. Agora não há mais nada senão tempo. Tempo quase puro, um vazio consecutivo.

(excerto de Dor, tradução de Carlos Grifo Babo, Grifo – editores e livreiros, 1999)

18.1.09

HELDER MACEDO

LIMIAR


Levanto a voz para invadir a treva.
A vida fustigada enfrenta o brusco
e fértil precipício que a sustém.
A própria identidade se suspende
e tomba, informe,
no impossível excesso
do canto que a revela.


Nada redime o logro
se a vida é o limite de ser outrem.


Porém que a voz assuma
e recupere
na sempre mais amarga ferida
a escuridão que gera o próprio canto.
E impessoal sibile
o frio surto que define e oculta
sabida, a treva, a só real,
já falsa.

(de Vesperal, 1957)