7.1.11

ALEXANDRE O'NEILL


AUTOCRÍTICA


Ninguém ma pediu e já não está na moda,
pelo menos aquela pressurosa contrição
feita com cálculo e unção, aquela hipócrita
autoflagelação despudorada,
mas já é tempo (para mim) de deitar contas
ao verso e ao seu reverso, de mostrar a língua
a esse médico de quem tenho um pouco,
para ver como vai o foro íntimo
e, por consequência, o verso público.

*

«Nado e criado em Lisboa...» era um começo
não autocrítico, mas autobiográfico.
Sei muito bem que a biografia
explica muita coisa (até a azia!)
mas para quê esquadrinhar os anos
(joguei berlinde, joguei pião e juro aqui
que nunca o fiz para os americanos!)
à cata da raiz, se o que vivi,
para o mal ou para o bem, está aqui?

«Nado e criado em Lisboa...»: rejeitado por
excessivamente circunloquial.
(Comecemos sem mais delongas, prima,
ó volta e meia prima pobre, rima,
que a questão é simples: a poesia
dum tal…)

*

Dizem que me junqueiro, que me tolentino
o até que me paulino,
que tenho tudo e todos no ouvido
e não sou nada original.

Sim senhores, tem visos de verdade!

Serei eu, meu Deus, um ser reminiscente,
um desses semblantes ante os quais manda a prudência
que se pergunte ao botão antes de mais:
— Onde é que eu já vi este tratante?

*

Se pensar bem, o Junqueiro não me diz lá grande coisa.
O seu anticlericalismo fica-se pela batina;
o seu verso é tribunício e eu gosto da surdina
(ou do simulacro de estentor quando ele ajuda à crítica).
O 5 de Outubro já veio e já se foi,
mas não é a lata-de-trovões junqueiriana
que estamos a pedir na circunstância épica
que se aprò... que se aprò... que se aproxima.

Liguei sempre ao Junqueiro (sei porquê)
a conversa de advogado e a conversa de barbeiro.

Um tio advogado recitou-mo quando eu tinha treze anos
e não era mudo e só na rocha de granito;
um barbeiro anarquista, que me fazia a barba
com a estropiada mão bombista,
impingia-me «A Lágrima», mas só ele é que se comovia
com aquela aguadilha que tremia
e ainda hoje deve tremer, tremeluzir
em certas almas litográficas, singelas.

Depois vi o Sérgio desmontar
as peças duma máquina que nem sequer havia
e perdi o Junqueiro de vista.

Será que eu me junqueiro? Pode ser,
já que tenho comido, sem saber,
de muita alpista...

Quanto a esse Tolentino, esse faceto,
devo dizer que nada lhe roubei
mas que podia ser seu neto.

Como neto podia muito bem
ser de Paulino, desse abade
que com certeza me arranjaria mãe.
(Continua o desfile, ó prima, já que a prosa
vai bonita a pretexto de autocrítica...)

*

Cesário diz-me muito: gostava de ferramentas, como eu,
e vê-se que para ele o ser feliz
era lançar, originais e exactos, os seus alexandrinos,
empunhar ferramental honesto
cuja eficácia ele sabia que
não vinha da beleza, mas da perfeita
adequação.
Não tem halo, tem elo e o seu encadeado
é o verso habilmente proseado.
(Que feliz eu seria, ó prima, se o Cesário
me tivesse deixado uma garlopa!)
António Nobre, embora seja muito em inho,
é o grande Só que somos nós,
por isso gosto dele (ai de mim, coitadinho!)
(E em conclusão do megalómano discurso.
ó prima, um bilhete-postal para o Pessoa.
a quem devemos todos tanto, a prima inclusive!)
Muito querido Pessoa, saberias agora
que não basta ser lúcido, merda, que não basta
a gente coser-se com as paredes
e cercar de grandes muros quem se sonha,
que não basta dizer basta de provincianos!

*

Bem sei que tenho sido, não poucas vezes, derrotado pela pressa,
que me espojo na anedota ou a embalo
na folha-de-flandres da conversa,
bem sei que muitos dos meus versos
nem para atacadores.
Sei que não se deve, que não é táctico cuspinhar contra o vento,
que logo, a jusante, um sujeito nos berra:
— Ó cavalheiro sua besta e se faz obséquio fosses cuspir na tua irmã!
Sei que não é bonito jogar ao chinquilho nos salões,
onde há tocheiros, santos, meninada, abstracções, tias
que a minha malha pode ofender, partir.
Sei que o sal das palavras
vai saraivar, às vezes, carne viva.
Sei que a rapariga que vem forrar os cantos
onde os homens se juntam, magote de pexotes,
com a sua esquivança de felino,
não aguenta a palavra com que eu lhe pego na palavra
e à queima-roupa lhe atiro.

*

A poesia é a vida? Pois claro!
Conforme a vida que se tem o verso vem
— e se a vida é vidinha, já não há poesia
que resista. O mais é literatura,
libertinura, pegas no paleio;
o mais é isto: o tolo dum poeta
a beber, dia a dia, a bica preta,
convencido de si, do seu recheio...
A poesia é a vida? Pois claro!
Embora custe caro, muito caro,
e a morte se meta de permeio.

*

De permeio, a morte? Sim, a arrenegada,
venha rebuçada ou escancarada,
a que te ceifa inteiro ou se deita, primeiro,
de esperanças, na tua lástima de cama.

De permeio, pois pois, que isso de morrer
não faz parte de nenhum programa.

E podia fazer?


(de Feira Cabisbaixa, 1965)



RUI KNOPFLI


CONTRIÇÃO

a pretexto de uma mulher de Portinari
que lembra Picasso (ou Antonello?)

Meus versos já têm o seu detractor sistemático:
uma misoginia desocupada entretém os ócios
compridos, meticulosamente debruçada sobre
a letra indecisa de meus versos.
Em vigília atenta cruza o périplo das noites
de olhos perdidos na brancura manchada do papel,
progredindo com infalível pontaria
na pista das palavras e seus modelos.

Aqui se detecta Manuel Bandeira e além
Carlos Drummond de Andrade também
brasileiro. Esta palavra vida
foi roubada a Manuel da Fonseca
(ou foi o russo Vladimir Maiacovsky
quem a gritou primeiro?). Esta,
cardo, é Torga indubitável, e
se Deus Omnipresente se pressente,
num verso só que seja, é um Deus
em segunda trindade, colhido no Régio
dos anos trinta. Se me permito uma blague,
provável é que a tenha decalcado em O'Neill
(Alexandre), ou até num Brecht
mais longínquo. Aquele repicar de sinos
pelo Natal é de novo Bandeira (Porque não
Augusto Gil, António Nobre, João
de Deus?). Estão-me interditas,
com certos ritmos, certas palavras. Assim,
não devo dizer flor nem fruto,
tão-pouco utilizar este ou aquele nome próprio,
e ainda certas formas da linguagem comum,
desde o adeus português (surrealista)
ao obrigatório bom-dia! (neo-realista).
Escrevendo-o quantos poetas, sem o saber,
mo interditavam apenas a mim; a mim, perplexo
e interrogativo, perguntando-me, desolado:
— E agora, José?, isto é, — E agora, Rui?

Felizmente, é pouco lido o detractor de meus versos,
senão saberia que também furto em Vinícius,
Eliot, Robert Lowell, Wilfred Owen
e Dylan Thomas. No grego Kavafi,
no chinês Po-Chu-I, no turco
Pir Sultan Abdal, no alemão
Gunter Eich, no russo André Vozenesensky
e numa boa mancheia de franceses. Que desde
a Pedra Filosofal arrecado em Jorge de Sena.
Que subtraio de Alberto de Lacerda
e pilho em Herberto Hélder e que
— quando lá chego e sempre que posso —
furto ao velho Camões. Que, em suma,
roubando aos ricos para dar a este pobre,
sou o Robin Hood dos Parnasos e das Pasárgadas.

Mas bastando-lhe o pouco que sabe de meus delitos,
e sem esse tanto que ignora, o detractor de meus versos.
relata circunstanciadamente e com detalhes perversos,
a feia história de meus feios actos.
A distracção de grupos sonolentos
acorda enfim para o timbre esquisito do meu nome
(Na sombra envenenada se entretece
o primeiro braçado dos louros que hão-de
cingir-me a fronte...). Por isso não quero mal
ao detractor de meus versos. Antes lhe quero
bem. Pela teimosa persistência do seu trabalho
vigilante é afinal um detractor amoroso,
o sistemático detractor de meus versos.


(de Mangas Verdes com Sal, 1969)

5.1.11

MALANGATANA


Cântico dos cânticos, 1997
34x33,5 cm
Técnica mista



RUI ALMEIDA



ALGUMA IMAGENS TIRADAS DE MALANGATANA


Ventres e olhos de dor
Na África da alegria
Sexos devorantes
Prazer isolado

Há uma tristeza a chegar ao fim
Uma esperança que não se vê
Senão na força de continuar a olhar.

31/10/1999

3.1.11

PABLO NERUDA


NÃO HÁ ESQUECIMENTO

(SONATA)

Se me perguntais onde estive,
devo dizer «Acontece».
Devo falar do chão que as pedras escurecem,
do rio que permanecendo se destrói:
não sei senão as coisas que os pássaros perdem,
o mar que ficou para trás ou minha irmã chorando.
Porquê tantas regiões, porquê um dia
se junta a outro dia? Porquê uma negra noite
se acumula na boca? Porquê mortos?
Se me perguntais de onde venho, tenho que conversar com coisas gastas,
com utensílios demasiado amargos,
com grandes animais muitas vezes já podres
e com meu angustiado coração.

Não são as lembranças que se atravessaram,
nem é a pomba amarelenta que no esquecimento dorme,
mas sim faces com lágrimas,
dedos na garganta, e o que se desmorona das folhas:
a escuridão de um dia decorrido,
de um dia alimentado com o nosso triste sangue.

Eis aqui violetas, andorinhas,
tudo o que nos agrada e aparece
nos doces cartões de visita de longa cauda
onde passeiam o tempo e a doçura.
Mas não penetremos para além desses dentes,
não mordamos as cascas que o silêncio acumula,
pois não sei que responder:
há tantos mortos,
e tantos molhes que o sol rubro partia,
e tantas cabeças que batem nos navios,
e tantas mãos que encerraram já beijos,
e tantas coisas que desejo esquecer.


(tradução de José Bento, in Antologia de Pablo Neruda, editorial INOVA, 1973 - original de Residencia en la tierra, 1933)