31.8.05

CARLOS POÇAS FALCÃO

Há grandes movimentos a golpes violentos
da matéria. Quentes rochedos abrem fendas
pelo coração, impactam na boca, lançam
a realidade à volta, uma devastação.
Andam os povos a fender a terra, os homens
com a memória cegamente dissipada
pela experiência. Por aparecimentos
vê-se a velocidade, a cauda das imagens
excitadas. Toca-se na fugacidade
e nesse movimento a mãos são arrastadas
vivas. E os olhos, pode-se fechar os olhos
porque a matéria ferve, irrompe, está irada.

(de Três Ritos, Pedra Formosa edições, 1993 - Arco Imperfeito)
[outros melros XXIX]

JOÃO CAMILO

4

O tambor do revólver
roda
à volta no teu sangue.
Melro inquieto das tuas veias.
O ponto de mira no cano
da pistola
descobriu o meu olhar,
acompanha-me:
quotidiano como os minutos
e segundos
do nosso encontro
na escada.

(de Para a Desconhecida, 1983)

30.8.05

O Granito também se dispersa:

Manuel Resende, ainda antes do QFM ter acabado, criou o Rimbaud Worrier (Focos de Incêndio); depois o Ruy Ventura criou a Estrada do Alicerce; agora o Rui Manuel Amaral junta-se a Cristina Fernandes nos Dias Felizes.
RUI KNOPFLI

OFÍCIO NOVO


Uma poesia exausta de pássaros
e folhagem
abre os olhos descarnados
para a paisagem de amarelos
lívidos.
No desconforto modorrento
da tarde
pulam insectos pardos
ao voo sonolento.
O olhar cauterizado
perde-se no árido desencanto
da planície morta
estendida inutilmente à fome dos homens.

Uma poesia cansada de aves
de sonho
e do brilho rútilo das imagens,
esgarça e seca e refaz-se
na magoada realidade de um céu
ardendo em ferida.
Do verso se rompe
a arquitectura íntima
e se ausenta a melódica
sonoridade.
Em silêncio, na paisagem tosca
de gente magra e escura e triste,
lentamente,
aprendemos um novo ofício.

(de Reino Submarino, 1962)

28.8.05

(Diego Rodríguez de Silva y Velázquez - Los borrachos, 1629)


VICENTE ALEIXANDRE


«LOS BORRACHOS»

A solidão conjunta poucos deixa fora, e cai nos rostos.
Ali se vêem olhos excitados. Há muito sol, e cobre se diria
a tez de quase todos, couro curtido largamente. Terra?
Argila? O sangue gira. E quase transparece?
Mas não. Grossa é a pele, e sob a polegada, rotundo rubro estala,
carmesim. Não, mais vivo, álacre, oh sim: espirituoso.
E a face brilha, quase delira, a par dos dois olhos.
Bêbados os direis. E em cima são os pâmpanos
torcidos. E o barril. Desnudo um torso,
quase veríeis resvalar o vinho, veloz, quente
por um corpo, que se palpita é terra e anuncia.
Esta cabeça é prata. Pálida também muito junta cobre espessa,
protege o pensamento pobre que ali insiste.
Pobre porém bem fundo: quase um jacto de ouro até a uns lábios.
Vinho ardente. Gozai. A tarde é jovem.
Essa mão essa malga levanta transbordante.
A vide, e entre outros pâmpanos os olhos.
Uma jovial donzela escapa incógnita.

Eles não vêem. Se olham vêem bolhas.
Sob o azul molhado o Sol reparte
sumo ou raios por igual. Resvala
sobre os ombros, lambe os peitos, brilha em gotas vividas
entre as suas sombras. Banha total o corpo a chama e veste
de inflamada realidade os bustos.

Velásquez! Embora jovem pintou um conhecimento,
já entalhando com o pincel. Acreditou? Enganou-se?
Quem sabe! Ainda era preto o ar,
antes de que analítico se abrisse
o que na síntese final se alcance.

(tradução de António Manuel Couto Viana, in Por Outras Palavras, Vega, 1997)