RACHEL DE QUEIROZNasceu em 1910, em Fortaleza, capital do Ceará, Brasil.
Escreveu, antes dos vinte anos, um dos romances mais belos da literatura brasileira contemporânea, a que se seguiu uma vasta obra, muito marcada pelo neo-realismo (Rachel foi membro do Partido Comunista Brasileiro) e repartida por ficção, teatro, crónica e infanto-juvenil, à qual foram atribuídos inúmeros prémios. Foi a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1977.
Morreu no dia 4 deste mês.
O pequeno ia no meio da carga, amarrado por um pano aos cabeçotes da cangalha.
De vez em quando, levava a mãozinha aos olhos, e fazia rah! rah! ah! ah! numa enrouquecida tentativa de choro.
Cordulina chegava-se à burra para o consolar, ajeitava-lhe o chapéu de pano na cabeça, até que um dos menores gritava:
- Olha, mãe! Os pés da zabelinha! olha o coice!
Chico Bento fechava a marcha, com o cacete ao ombro, do qual pendia uma trouxa.
Mocinha, de vestido engomado, também levava sua trouxa debaixo do braço, e na mão, os chinelos vermelhos de ir à missa.
O sol ia esquentando. De cima da cangalha, o menino chorou com mais força, debatendo-se, até que Cordulina o retirou, com medo de uma queda.
Pô-lo no quarto; logo uma briga se armou entre os outros, num assalto aceso ao lugar na cangalha; na balbúrdia da disputa, eles se confundiam e só se podia distinguir, de momento a momento, um murro, um rasgão, e nuvens de poeira.
Chico Bento, intervindo, trepou o menor. E os outros, por trás do pai, vingavam-se, estirando a língua, com gestos insultuosos mas perdidos porque o cavaleiro não os via, mergulhado na alegria de sua vitória.
Súbito, sua vozinha estridulou num grito comovido:
- Olha a Rendeira!
E apontava para uma vaca pintada de preto e branco, que, magra e quieta à beira da estrada, parecia esperar a família fugitiva para uma derradeira despedida.
Cordulina recomeçou a chorar; o próprio Chico Bento passou rapidamente a manga pelo rosto.
A Rendeira fitou em todos os seus grandes olhos dolorosos, donde escorria uma lista clara sobre o focinho escuro, como um caminho de lágrimas.
Só Mocinha olhou a rês com indiferença, ajeitou na mão as chinelas, e continuou a andar no seu passo macio, tão rápido e leve que mal esmagava os torrões quebradiços do chão.
(excerto de
O Quinze, 1930)