EMMA SANTOS
Preferi fugir. Fugir do exterior. Fugir do interior, abandonar os locais. Refugiar-me na irrealidade. Não sabia bem o que queria: estar no hospital ou voltar a encontrar-me com o mundo. Pensava numa única coisa: não aturar os outros, nem os de fora nem os de dentro.
Decidi. A loucura escolhida escrita nas folhas, esta loucura feita com as minhas palavras e os meus desejos. Lancei-me no delírio como uma imensa extensão de água à minha frente, impelida e atraída pelo meu duplo. Os outros na margem, tentavam recuperar-me, interromper-me. Proibiam-me que ultrapassasse as fronteiras da decência. Investiam, seduziam-me com drogas, ameaçavam-me. Eu fugia para mais longe.
Caminho fora. Inspiro o desdém. Ninguém me vê. Acotovelam-me, tropeçam em mim. Peço desculpa, digo obrigado em voz baixa. Discreta, tímida ao sabor do burburinho. Anulo-me, escura, neutra, invisível, apago-me branca, suja, parda, preta. Tento coser-me com os muros. Os meus olhos cospem vapores sobre o mundo, uma boca de encontro ao vidro. É o meu sangue que se esvai em fumo. O meu sangue aquece e evapora-se. Os meus olhos com laivos de vermelho. Envergonhada, entro num corredor. As vassouras e os gritos das porteiras lançam-me fora. As escadas enceradas, as passadeiras às flores, as entranhas dos prédios são-me vedadas. Não subirei até ao cimo. Uma casa pequena embora, um sítio para repousar, um canto para descansar, uma cama para me deixar ficar, um buraco... Caminho. As pessoas fazem sinais, pensam que não sou bem como elas. Há qualquer coisa, não sabem exactamente o quê. Uma suspeita, uma impressão, é isso. Ou então, nem pensam nada.
(excerto de O Teatro, Assírio & Alvim, 1981 - colecção Gato Maltês - trad. de Manuel João Gomes)
21.11.03
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