17.4.10

WALLACE STEVENS


SEIS PAISAGENS SIGNIFICATIVAS


I

Um velho está sentado
À sombra de um pinheiro
Na China.
Vê esporas,
Azuis e brancas,
Na orla da sombra,
Moverem-se ao vento.
A sua barba move-se ao vento.
O pinheiro move-se ao vento.
Assim flui a água
Sobre as algas.


II

A noite é da cor
Do braço de uma mulher:
Noite, a fêmea,
Obscura,
Fragrante e flexível,
Encobre-se.
Uma lagoa brilha,
Como uma pulseira
Agitada numa dança.


III

Meço-me
Contra uma árvore alta.
Acho que sou muito mais alto,
Pois chego mesmo até ao sol,
Com os meus olhos;
E chego à praia do mar
Com os meus ouvidos.
Todavia não gosto
Do modo como as formigas rastejam
Para dentro e para fora da minha sombra.


IV

Quando o meu sonho estava perto da lua,
As pregas brancas da sua túnica
Encheram-se de luz amarela.
As plantas dos seus pés
Ficaram vermelhas.
O seu cabelo encheu-se
De certas cristalizações azuis
De estrelas,
Não distantes.


V

Nem todas as facas dos postes de luz,
Nem os cinzéis das longas estradas,
Nem os maços das abóbodas
E torres altas,
Podem esculpir,
Brilhando através das folhas da videira.


VI

Racionalistas de chapéus quadrados,
Pensam, em salas quadradas,
Olhando para o chão,
Olhando para o tecto.
Restringem-se
A triângulos rectos.
Se experimentassem rombóides,
Cones, linhas ondulantes, elipses -
Como, por exemplo, a elipse da meia lua -
Os racionalistas usariam sombreros


(in Ficção Suprema, tradução de Luísa Maria Lucas Queirós de Campos, Assírio & Alvim, 1991 - Gato Maltês / original de Harmonium, 1923)

16.4.10

RUY BELO


NO AEROPORTO DE BARAJAS


Não são os aviões que aqui levantam voo
aqui não é metálica a imaginação
Daqui levantam voo estes americanos
que perto matam longe o povo heróico vietnamita
que aqui pagam em dólares a dor dos sul-americanos
que fingem vida aqui a morte do nordeste brasileiro
As barrigas aqui assinaladas pelo menos por meio cento de estrelas
ocultam esses índios esses pretos essa gente sub-americana
que garante a barriga destes sobre-americanos
Aqui branqueja a branda casa branca
perfurada pelo mais narigudo dos narizes
que em toda a parte surge onde não é chamado
Aqui se representa a primeira das damas deste mundo
essa mãe virtuosa e responsável
que limita a natalidade sua sem deixar
de controlar também a das mulheres de todo o mundo
Pat aliás acaba de ganhar a eleição anual das
mulheres que segundo a revista good housekeeping
maior admiração de nós merecem
pela coragem e pelo desejo
de ajudarem outros seres humanos e
se não ajuda os pretos nem os índios nem aqueles
que neste mundo nesta vasta américa do norte
que é a maior parte deste mundo
é porque se duvida seriamente de que sejam seres humanos
Aqui grassa o mau gosto aqui a gente
que fica por aqui em todos quantos partem
aqui a gente goza a ver estes patuscos
que passam de montera na cabeça
aqui a gente vive a morte que aí vai aqui
vive nestas barrigas quem não vive
Aqui os servos nós eles senhores
aqui ficamos nós aqui levantam voo não
os aviões mas estas certas aves de arribação


(de Transporte no Tempo, 1973)

15.4.10

[ver: Autobiografia e notícia no Público]

JAIME SALAZAR SAMPAIO


intervalo


nesta página onde minuciosamente não há poesia.
estou em liberdade.
se uma palavra me desagrada pela música
deixo-a ficar, não se trata de lisonjear o ouvido;
se não encontro a imagem, escrevo com tinta
de cor diferente ou deito-me de costas ao sol.
e no fim estarei satisfeito,
o que é muito importante.
sim, sim: é exacto haver colarinhos a mais nesta
cidade-museu-capital-de-império e um grande,
um esponjoso pavor do ridículo espalhado
nas ruas e no sangue dos seus habitantes.
ora eu, como ia dizendo; sejamos ridículos.
chegou uma hora em que é forçoso sermos
ridículos, é saudável sermos ridículos, é grande
(arre!) sermos ridículos, não sabemos
(os inocentes...), não tomamos parte,
não somos um mundo, não estamos;
ora pois arrebentemos connosco
à força do ridículo.
e como ainda temos na cidade talvez
um último amigo, depressa: bebamos com ele.
se de tudo isto ficar um dia perdido, alguma coisa
— há outros caminhos.
por hoje, sejamos ridículos sem caminho nem
carro nem velocidade; apenas com esta página
entre os dedos, onde definitivamente não houve
poesia e um homem respira a seu modo
a migalha áspera da liberdade provisória.


(de o viajante imóvel, Plátano editora, 1979)

14.4.10

EDUARDO PAZ BARROSO


DOS TEARES SAEM AGORA


Na boca rotativa o poema amnésico desce
a cada um dos patamares do esquecimento.
Vai à procura de um exercício cruel:
detonar palavras uma a uma,
até ficar de ti a sombra húmida,
a corroer de ferrugem o molho de chaves
afinal inútil.
Mal servem para abrir a fábrica, as portas que a selam.
Dos teares saem agora grandes praias emaranhadas
umas nas outras
e os afogados zangam-se muito
a horas mortas, enquanto dançam
sobre o abismo em que te fito,
de braços abertos,
a soletrar enxames de silêncio muito espesso.

Poderosamente sentada no granito do muro,
a tua sombra corre então por ali fora,
fecha os olhos a esta vista
sem miradouro, sem certezas para
se afundar no cheiro de tantas proas ateadas, pelo sim
e pelo não.
Lembro-a branda, insuficiente, tingida pelo pânico,
como se fosse louca e capaz de me empurrar
lá para a frente,
onde tudo é mais perigoso,
ou atravessado por uma seta cinzelada
que perfura o íntimo vocabulário
desta certeza pequena
como a lagartixa imóvel, ainda ao sol da tarde,
pequena e cheia de dívidas
a somar encomendas que não param
de encarquilhar as pálpebras,
como se fosse possível,
como se fosse provável
nascerem risos por debaixo dos textos taciturnos,
daqueles que dividem os dias entre si,
como se nos lábios morresse todas as noites
um amor desabitado.


(de Movimento Marítimo, edição do Autor, 2008)

13.4.10

ORLANDO NEVES


Só o osso ou a pedra subsistem,
depois de ter ouvido o vento sinuoso
descer pelos rios sonhados, depois de
respirar a crispação dos charcos,
depois de acender a dor da música
no equilíbrio dos lábios. Devagar
me movi e ninguém iluminou o mar,
rompeu os limites ou foi resto
de substância na lonjura dos dias.
Em que boca respira o que é idade
e chora, o que é voz e finge, o que é ave
e dorme? A que sabor de areia retorno,
eternamente límpido, se, outrora, vivi
no coração dos olhos, no hímen das flores?
Hoje apenas me penso. Ou nasço quando
desejo. Ou me ergo se, do fundo das águas,
ressoa a escassa nudez do que não sinto.
Já é ideia a noite mas nela ainda o sol
começa e se abre, quente, sobre a ferrugem
colada à pele, primeira oca sombra
dos mortos. Esplende, definitivamente
solitária, para sempre contida no que andei
e cri. Em breve há que atingir o vazio
da memória e nele persistir. Até que,
livre das máscaras que nos corpos fui,
venha, última, a surdez das vozes.


(de Regresso de Orfeu - Clamor, Sol/Poesia, 1989)

12.4.10

RUI MIGUEL RIBEIRO


VI - ROSE, GOLD, LANDSCAPE OR ANOTHER*


Podemos sempre falar em depois.
A rosa artificial que me antecedeu
permanece indiferente com as
suas manchas de ouro, voltada
sobre a imagem da cidade.

Tantas foram as já nomeadas,
mas esta também tem a sua virtude,
espinhos de plástico que simulam
o atrito de viver que são estes dias.

Duração resistente ao tempo,
ao apetite e ao sol que a cobre
pela mesma indiferença.
Na fronteira de ser, a sua sombra
tem mais vida e quase chega até mim.

Rosa, ouro e olhar, desperta
na sua duplicidade o desejo
e a plenitude de amar,
contra o vidro que me separa.

* Verso de Stephen Spender

(de XX Dias, Averno, 2009)

11.4.10

ERICH FRIED


O RENASCER DA POESIA


Oh esplendor da linguagem dos escravos
em breve te teremos de novo!
Então também nós poderemos em boa consciência
rever-nos em todas as épocas sobre as quais alguma vez
lemos o suficiente para lhes tomar o gosto
e para as derreter no fogo lento
da nossa vida
em suculentas insinuações

Louvados sejam os poderosos que com a sua habilidade política
nos barram o caminho para a secura da frase simples
e nos enriquecem
conduzindo-nos
à comunhão com outras épocas em que
quase como hoje a precaução estendia a mão à liberdade

Agora já não é preciso pensar em coisas novas
ou descrever qualquer coisa de forma mais exacta do que fácil
Não, a simples alusão com um laivo de coragem
àquilo que todos já sabem
suscita vivos aplausos
e os poderosos concedem aos pequenos a pequena consolação
e toleram quase sempre
o que alivia e não os põe em perigo

Tornam o nosso público
a quem já nada satisfazia
atento e de novo grato
pois o anseio de liberdade
quando a bem-amada
nos atrai ainda envolta em leves véus
é mais belo do que a liberdade
nua e sem pudor
da qual precavidamente nos protegem


(de 100 Poemas sem Pátria, tradução deste poema de João Barrento, publicações Dom Quixote, 1979 - Poesia Século XX)